SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros VIEIRA, R., and CHACON, L. Movimentos da hesitação: deslizamentos do dizer em sujeitos com doença de Parkinson [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, 108 p. ISBN 978-85-7983-664-0. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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Movimentos da hesitação deslizamentos do dizer em sujeitos com doença de Parkinson
Roberta Vieira Lourenço Chacon
MOVIMENTOS DA HESITAÇÃODESLIZAMENTOS DO DIZER EM SUJEITOS COM DOENÇA DE PARKINSONROBERTA VIEIRALOURENÇO CHACON
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO
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CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO
Responsável pela publicação desta obra
Dra. Célia Maria Giacheti
Dra. Luciana Pinato
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Dra. Ana Claudia Figueiredo Frizzo
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ROBERTA VIEIRA
LOURENÇO CHACON
MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO
DESLIZAMENTOS DO DIZER EM SUJEITOS COM DOENÇA
DE PARKINSON
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© 2015 Editora Unesp
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CIP – Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
V718m
Vieira, RobertaMovimentos da hesitação [recurso eletrônico]: desli-
zamentos do dizer em sujeitos com doença de Parkinson / Roberta Vieira, Lourenço Chacon. – 1.ed. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015.
Recurso digital
Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-7983-664-0 (recurso eletrônico)
1. Doenças neuromusculares – Pacientes. 2. Par-kinson, Doença de – Tratamento. 3. Fonoaudiologia. 4. Livros eletrônicos. I. Chacon, Lourenço. II. Título.
15-26792 CDD: 616.744CDU: 616.858
Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)
Editora afiliada:
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AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pelo financiamento concedido para o de-
senvolvimento das pesquisas que originaram este livro.
A Carmen Lúcia Barreto Matzenauer, Clélia Cândida
Abreu Spinardi Jubran (in memoriam) e Leda Verdiani
Tfouni, por toda a atenção e pelos direcionamentos que
se mostraram fundamentais para a concretização deste
trabalho.
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NL mas não tem jeito né + igual eu
venho aqui às vezes eu venho bem a
hora que eu entro aqui dentro já
JN + já trança [a perna]
NL [por que será?] + cabeça né?
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SUMÁRIO
Apresentação 11
1 A doença de Parkinson 172 Aspectos metodológicos 433 Resultados e discussão 55
Considerações finais: possíveis contribuições
para a clínica fonoaudiológica 93Referências bibliográficas 101Sobre os autores 107
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APRESENTAÇÃO
Neste livro, abordaremos um funcionamento hesitati-
vo bastante frequente no discurso de sujeitos com doença
de Parkinson: os deslizamentos do dizer em contexto fo-
nético-fonológico recorrente.
Nosso interesse mais particularizado pelo estudo
desse funcionamento das hesitações ou, de modo mais
amplo, pelo estudo das próprias hesitações, resultou, pri-
meiramente, do fato de nos situarmos em um lugar que
consideramos privilegiado para a observação de questões
mais gerais de linguagem, e, de modo mais específico, de
suas características em sujeitos parkinsonianos: o lugar
da interseção entre os campos de conhecimento da Fono-
audiologia e da Linguística. Situados nesse lugar, nosso
interesse acabou voltando-se para a observação empírica
e teórica dessas questões.
Em nosso contato cotidiano com questões de lingua-
gem (clínicas e teóricas), no qual defrontamos com a in-
terseção desses dois campos, o teórico e o empírico, temos
constatado que as hesitações são bastante frequentes nos
enunciados falados de parkinsonianos. A literatura (bio-
médica), ao explicar teoricamente seu funcionamento
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nesses enunciados, considera que são decorrentes sobre-
tudo de aspectos orgânicos alterados pela doença.
Situados, no entanto, justamente na interseção entre
a Fonoaudiologia e a Linguística, inquietou-nos esse en-
tendimento da literatura biomédica e nos questionamos:
Seriam de fato os aspectos orgânicos os únicos a expli-
car a singular ocorrência dessas hesitações no discurso de
sujeitos parkinsonianos?
De antemão, antecipamos ao leitor que nossa respos-
ta a essa questão é negativa. Especialmente porque as
hesitações se caracterizam por serem, antes e acima de
tudo, um fenômeno da linguagem. Mostram-se presen-
tes quando a linguagem é adquirida, ocorrem durante o
seu funcionamento, considerado normal, nos adultos, e,
muitas vezes, potencializam-se em sua dissolução, como
acontece no caso dos problemas decorrentes da doença de
Parkinson. Explicar, portanto, seu funcionamento no dis-
curso de sujeitos parkinsonianos supõe levar em conside-
ração não apenas a ação dos aspectos orgânicos envolvidos
na doença, mas também, e principalmente, os aspectos
linguístico-discursivos.
E foi justamente essa a nossa proposta ao desenvolver-
mos o estudo que resultou neste livro. Ao buscarmos as
características do funcionamento hesitativo deslizamen-
tos do dizer em contexto fonético-fonológico recorrente
no discurso de um sujeito parkinsoniano – o qual identifi-
caremos como NL –, apoiamo-nos essencialmente em tra-
balhos de base linguístico-discursiva, segundo os quais as
hesitações seriam marcas, no discurso, de momentos mais
turbulentos da negociação entre o sujeito que se mostra
no discurso e os outros que o constituem (tanto o sujeito
quanto o discurso) como tal.
Na medida em que objetivamos problematizar o en-
tendimento da literatura biomédica sobre as questões de
linguagem na doença de Parkinson, em nosso estudo, em
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um primeiro momento, fizemos a descrição das caracte-
rísticas do funcionamento hesitativo que chamamos de
deslizamentos do dizer em contexto fonético-fonológico
recorrente e, em um segundo momento, procuramos de-
monstrar em que medida tais características resultariam
de fatos recuperáveis no processo discursivo.
Um fato a ser destacado a respeito dos trabalhos de
natureza biomédica que tratam da doença de Parkinson –
sobre os quais, privilegiadamente, se assenta a literatura
fonoaudiológica voltada para a doença – é que são raros
aqueles que mencionam explicitamente as frequentes
hesitações no discurso dos parkinsonianos e, quando o
fazem, entendem como hesitações principalmente o nú-
mero de pausas ou o tempo de sua duração. Outras marcas
linguísticas de hesitação são muito pouco exploradas por
essa literatura e, até onde nossa pesquisa bibliográfica
conseguiu alcançar, nenhum trabalho se atém especifi-
camente ao estudo do funcionamento desse aspecto tão
característico do discurso dos parkinsonianos.
Por sua vez, no que diz respeito à literatura de base
linguística que se preocupa em estudar as hesitações, tam-
bém até onde nosso levantamento bibliográfico conseguiu
alcançar, poucos trabalhos dão atenção às hesitações em
casos como os de doença de Parkinson.
Essas lacunas nos dois tipos de literatura acabam por
dificultar tanto a compreensão sobre a abrangência e as
características dos problemas de linguagem decorren-
tes da doença de Parkinson, quanto sobre sua avaliação
e terapia fonoaudiológicas, especialmente porque uma
necessária interdisciplinaridade entre a Linguística e a Fo-
noaudiologia (que, como se sabe, têm a linguagem como
elemento fundamental em sua constituição como campos
de conhecimento) se mostra ainda como uma construção
inicial no contexto brasileiro.
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Desse modo, por um lado, no interior da Fonoaudio-
logia, não são muitos os trabalhos que se assentam sobre
contribuições que a Linguística pode oferecer, tanto no
que se refere ao funcionamento considerado normal da
linguagem, quanto àquele considerado patológico. Por
outro lado, ao buscarmos na literatura linguística estudos
que pudessem auxiliar no entendimento dos problemas
de linguagem relacionados à doença de Parkinson, obser-
vamos muito pouca preocupação com esses problemas.
No entanto, alertava Jakobson (1973), ao estudar fenô-
menos linguísticos relacionados à afasia, “os linguistas
não podem abster-se de tomar um papel mais ativo na
investigação dos transtornos da fala” (p.45).
Diante do ainda restrito diálogo entre esses dois cam-
pos do conhecimento no que diz respeito à doença de Par-
kinson, muitos dos problemas relacionados à linguagem
são diagnosticados pela Fonoaudiologia como patologias
e tratados especialmente a partir do ponto de vista neu-
rológico. Mas não se pode atribuir apenas ao campo da
Fonoaudiologia essa restrição, já que é ainda pequena a
contribuição da Linguística, no Brasil, para modificar
esse quadro.
Assim, mostra-se como uma possibilidade de contri-
buição do estudo apresentado neste livro constituir, jun-
tamente com outros trabalhos com enfoque semelhante,
um instrumental de pesquisa de base linguística para a
produção de conhecimentos que propiciem avanços na
compreensão das alterações de linguagem de sujeitos com
lesões neurológicas, sobretudo com doença de Parkinson.
Outras contribuições mais pontuais também podem ser
mencionadas:
• Considerando que a Fonoaudiologia, tradicional-
mente, privilegia o aspecto formal da língua e, em
decorrência, não prioriza os aspectos linguístico-dis-
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cursivos subjacentes às alterações de linguagem, pre-
tendemos, ao estudar o funcionamento hesitativo,
mostrar a importância de uma visão linguístico-dis-
cursiva dele para melhor compreensão dos proble-
mas que, no interior desse campo do conhecimento,
são caracterizados como distúrbios de linguagem ou
que, em outra perspectiva, caracterizariam uma fala
sintomática.
• Pretendemos, ainda, com o nosso estudo, possibilitar
melhor compreensão acerca do funcionamento hesi-
tativo no campo da Linguística, levando para esse
campo reflexões feitas a partir da análise de dados
extraídos de contextos patológicos da linguagem.
Este livro está organizado em quatro capítulos. No
Capítulo 1, “A doença de Parkinson”, o leitor encontrará
um apanhado teórico de como têm sido estudadas as he-
sitações em sujeitos com essa doença, bem como uma sín-
tese de nossa compreensão teórica sobre elas. Para tanto,
nele apresentaremos estudos que consideramos repre-
sentativos da literatura biomédica sobre essa doença, os
quais ilustram, de modo privilegiado, como os aspectos
relacionados à linguagem têm sido entendidos nessa lite-
ratura. Mais especificamente, será destacado um desses
aspectos, as hesitações, e como elas têm sido entendidas
em trabalhos sobre a linguagem nos sujeitos parkinso-
nianos construídos sob diferentes perspectivas teóricas.
Apresentaremos nesse capítulo, ainda, de modo breve, os
conceitos que fundamentarão a análise dos dados de nosso
estudo.
No Capítulo 2¸ “Aspectos metodológicos”, apresenta-
remos aspectos do banco de dados do qual selecionamos
o material utilizado no estudo, bem como o recorte rea-
lizado, dentre o vasto material que compõe o banco, para
a escolha do sujeito e da sessão de conversação analisada.
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Ainda nesse capítulo, faremos uma breve caracterização
das hesitações e dos critérios utilizados para a seleção dos
enunciados analisados.
No Capítulo 3, “Resultados e discussão”, apresentare-
mos os dados recolhidos, o funcionamento e as caracterís-
ticas das hesitações.
Por fim, nas “Considerações finais”, retomaremos
caminhos percorridos ao longo do trabalho, destacando
as contribuições que esperamos ter oferecido, sobretudo
aquelas que podem fornecer subsídios para a clínica de lin-
guagem com sujeitos afetados pela doença de Parkinson.
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1 A DOENÇA DE PARKINSON
A doença de Parkinson é estudada especialmente pela
literatura biomédica. De acordo com essa literatura, ela
resulta de uma alteração do sistema extrapiramidal que
provoca a redução dos neurônios dopaminérgicos da
substância negra (Machado, 2000; Samii, Nutt; Ranson,
2004). Essa alteração neurológica ocasiona, ainda segun-
do essa literatura, características motoras consideradas
clássicas na doença: tremor; rigidez muscular; lentidão na
execução dos movimentos (Samii, Nutt; Ranson, 2004;
Dias; Limongi, 2003; Murdoch, 1997).
O tremor, frequente nos membros, é definido como
“movimentos rítmicos, involuntários” (Cnoackaert et al.,
2008, p.289). Essa característica motora pode ser mais
bem percebida distalmente, como nos dedos das mãos,
mas algumas vezes pode ser vista nas pálpebras, na língua,
na face ou em outras partes do corpo.
A rigidez corresponde a um aumento da resistência
muscular notado durante a execução de movimentos
(Samii, Nutt; Ranson, 2004; Limongi, 2001). Confor-
me Limongi (2001), para cada grupo de músculos exis-
tem outros, os antagonistas. A rigidez característica da
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doença de Parkinson ocorre porque a inibição dos mús-
culos antagonistas, normalmente realizada para facilitar
um movimento, não se dá de modo eficaz. Nos sujeitos
parkinsonianos, “quando um membro é deslocado pas-
sivamente [...] podem-se sentir, superpostos à rigidez,
curtos períodos de liberação rítmicos e intermitentes, fe-
nômeno que recebe o nome de sinal de roda denteada”
(id., ibid., p.17).
Além do tremor e da rigidez, também são observadas,
nos sujeitos parkinsonianos, lentidão e redução na execu-
ção dos movimentos. De acordo com Murdoch (1997),
“os movimentos da face apresentam marcada escassez de
movimentos nas atividades volitivas e emocionais. Quan-
do ocorrem respostas emocionais, tendem a se desen-
volver lentamente e a se prolongar (por exemplo, sorriso
fixo)” (p.207-8).
Pelo exposto, nota-se que os problemas de ordem mo-
tora são largamente descritos pela literatura biomédica.
Os aspectos mencionados foram citados já na primeira
descrição da doença, feita em 1817 por James Parkinson.
O autor detectou, em sujeitos afetados pela doença, movi-
mentos trêmulos involuntários e reduzida ação muscular,
com propensão para curvar o corpo para a frente e mar-
char a passos rápidos. Verificou também dificuldades na
deglutição, na articulação de palavras e voz fraca, o que,
segundo ele, tornava a fala difícil de ser compreendida por
aqueles que tinham constante contato com esses sujeitos.
Essa observação de James Parkinson é de grande interesse
para nosso trabalho, pois os problemas de linguagem de-
correntes da doença, embora restritos à produção da fala,
foram mencionados em sua primeira caracterização.
Seguiram-se vários outros trabalhos, no interior da
literatura biomédica, que se ocuparam em observar aspec-
tos que podemos considerar relacionados à linguagem nos
sujeitos parkinsonianos.
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Canter (1963), por exemplo, descreveu o que chamou
de comportamento de fala de um grupo de pacientes par-
kinsonianos. Para tanto, baseado na leitura oral de um
texto, realizou medições sobre intensidade, pitch1 e dura-
ção (número e média da duração de pausas, frases e síla-
bas) na fala desses sujeitos.
Streifler e Hofman (1984) investigaram a influência
da rigidez e do tremor em diferentes características da
fala: a intensidade, o pitch, a velocidade e o timbre, além
da inteligibilidade. Salientaram que a “monotonia” é ca-
racterística presente nas alterações de fala relacionadas à
doença e que alguns parkinsonianos tendem a apresentar
desordens na velocidade da fala, além de hesitações, ca-
racterizadas pelos autores como o aumento do tempo das
pausas.
Nessa mesma perspectiva, Barbosa (1989) observou,
na fala de sujeitos parkinsonianos, comprometimento da
fonação e da articulação, marcado pela redução do volu-
me da fala, pela perda da capacidade de inflexão da voz e
por distúrbios de ritmo, quadro que configura, segundo o
autor, um tipo de disartria2 hipocinética.
Também Fenton, Shain’schley e Niimi (1982) obser-
varam a presença do que consideraram desordens do trato
vocal e disartria. Além das características já destacadas
por Barbosa (1989), os autores incluíram, como desor-
dens, a presença de rouquidão e a aspereza na voz dos
parkinsonianos, que seriam decorrentes da movimenta-
ção assimétrica das pregas vocais, resultado da condição
muscular patológica típica da doença de Parkinson.
1 Variações de frequência fundamental da fala, como percebidas
auditivamente.
2 Trata-se de anormalidades na fala e na voz, em geral associadas à
doença de Parkinson, que provocam redução da inteligibilidade
da fala, o que afeta negativamente a comunicação interpessoal e a
qualidade de vida (Ramig; Fox; Sapir, 2004).
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Em trabalhos mais recentes, Ramig, Fox e Sapir (2004)
apontaram como principais desordens de fala em parkin-
sonianos: intensidade reduzida, diminuição da inflexão
vocal (também chamada pelos autores de fala monótona),
voz rouca e imprecisão articulatória. Resultados seme-
lhantes são encontrados em Gasparini, Diaféria e Behlau
(2003), e ainda em Ferreira, Cielo e Trevisan (2009), que
detectaram alterações vocais de grau moderado e, ainda,
na frequência fundamental de parkinsonianos.
Notamos, nos trabalhos mencionados, que os aspectos
da linguagem nos sujeitos afetados pela doença de Parkin-
son são considerados problemas de fala. De acordo com a
literatura biomédica, esses problemas remetem primor-
dialmente a duas instâncias da produção da fala. Uma
delas relaciona-se às dificuldades motoras de produção
da voz, com destaque para aspectos da qualidade vocal
(como a rouquidão) e para outros que a literatura linguís-
tica caracterizaria como de natureza prosódica, como a
intensidade vocal. Já a segunda instância é aquela relacio-
nada às dificuldades motoras de produção dos segmentos
da fala (vogais e consoantes). Destaque-se que, dentre
os trabalhos que se voltaram para essas dificuldades de
articulação, alguns mencionam também características da
linguagem que poderíamos considerar como hesitações.
Voltaremos a essa questão mais adiante.
Chamou-nos a atenção na literatura biomédica, no
entanto, o trabalho de Spencer e Rogers (2005), que vai
além, em alguma medida, desse enfoque nas dificulda-
des motoras da fala de parkinsonianos. Embora tomem
como ponto de partida os movimentos envolvidos na
produção de vogais e consoantes, os autores não se vol-
tam apenas à execução motora de tais movimentos, mas
também para o que chamam de programação motora dos
movimentos. Esta programação corresponderia, segundo
eles, ao “processo de transformação de representações
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linguístico-simbólicas em um código motor” (p.347). Ao
investigarem possíveis relações entre a programação de
movimentos da fala e a programação de movimentos dos
membros, os autores levantaram a hipótese de que pro-
cessos cognitivos estariam envolvidos nelas, na medida
em que antecederiam a execução dos movimentos. Além
de chamarem a atenção para a possibilidade de alterações
que envolveriam a manutenção de representações cogniti-
vas e motoras em parkinsonianos, eles observaram nesses
sujeitos, ainda, uma possível perda da habilidade de ra-
pidamente transicionar entre movimentos e/ou arranjos
cognitivos.
Esse trabalho se distancia, de certo modo, daqueles
que privilegiam apenas os movimentos envolvidos na
execução da fala, embora ainda se restrinja à análise de
um aspecto bastante específico da linguagem: a articu-
lação de vogais e consoantes na produção de palavras
monossilábicas.
Essa abertura, que permitiu levar em conta outros
aspectos da linguagem envolvidos na produção da fala,
além daqueles de natureza motora, já pode ser observada
em outros trabalhos desenvolvidos no campo biomédico.
Hayashi et al. (1996), Hayashi, Hanyu e Tamaru (1998),
Fiels et al. (1999), entre outros, consideram a linguagem
uma habilidade cognitiva3 que, juntamente com outras
(como a memória, a coordenação visomotora, as habi-
lidades visoespaciais, o raciocínio abstrato e a atenção),
estaria comprometida nos sujeitos afetados pela doença
de Parkinson. Nessa mesma perspectiva, Barbosa et al.
(1987) investigaram o que chamam de disfunções neu-
3 Não encontramos, nos trabalhos da área biomédica a que tivemos
acesso, definição explícita sobre o que se poderia entender por
“cognitivo”. Observamos apenas que alguns trabalhos relacio-
nam as questões cognitivas às chamadas funções superiores, que
seriam, a nosso ver, de ordem neurofisiológica.
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ropsicológicas presentes nos sujeitos parkinsonianos e
identificaran alterações em funções caracterizadas como
memória, abstração, gnosia visual, dentre outras. Para
esses autores, a linguagem, assim como outras funções
cognitivas, estaria prejudicada nesses sujeitos, contudo,
se comparada com outras funções superiores, haveria “re-
lativa preservação da linguagem” (p.115). Destaque-se
que o que Barbosa et al. consideraram como linguagem
refere-se apenas ao que denominam de “fluência verbal”.
Mas não são apenas esses autores que fazem essa redu-
ção. Também em Flowers, Robertson e Sheridan (1995)
a “fluência verbal” corresponderia à habilidade de es-
pontaneamente gerar palavras de dada categoria em curto
período de tempo – em geral, um minuto. Essa habilidade
é medida por meio de testes que exploram capacidades
associativas reveladas por meio de dois tipos de resgates
de palavras: o fonêmico e o semântico (Henry; Crowford,
2004). No primeiro tipo de resgate, a capacidade associa-
tiva se verifica pela produção de palavras que iniciam com
a mesma letra (como se vê, confundem-se, nesse tipo de
teste, letras e fonemas) e, no segundo tipo de resgate, pela
produção de palavras que remetem a determinada catego-
ria conceitual (como comida, animais ou mobília).
Nota-se, pois, nesse tipo de proposta, que a avaliação
do que se entende por fluência verbal sustenta-se em tes-
tes bastante padronizados, que consideram apenas a capa-
cidade associativa de produzir palavras. Não bastasse essa
restrição metodológica, a própria concepção de fluência
que se pode inferir desse tipo de proposta a reduz a um
dos eixos de organização da linguagem, o paradigmático,
na medida em que apenas “habilidades associativas” são
testadas.
Mas, nos trabalhos desenvolvidos no campo biomédi-
co voltados para a chamada fluência verbal, outras carac-
terísticas são consideradas. É o que se vê, por exemplo, em
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Gurd (2000): ao comparar resultados de testes que avalia-
ram a chamada busca semântico-lexical de palavras (word
search), concluiu que o déficit na fluência verbal estaria
relacionado somente às questões cognitivas (ou seja, se-
mântico-lexicais), excluindo o envolvimento dos aspectos
motores na produção da fluência. Conclusão semelhante
é encontrada também em Henry e Crowford (2004), para
os quais a chamada fluência verbal estaria mais compro-
metida em parkinsonianos que apresentariam déficits
cognitivos do que naqueles nos quais esses problemas não
haviam sido detectados. Por sua vez, em uma compara-
ção entre sujeitos com e sem doença de Parkinson, Dag-
dar, Khatoonabadi e Bakhtiyari (2013) observam déficits
no desempenho dessa fluência predominantemente em
sujeitos com a doença. Por fim, ao detectarem alterações
apenas no que avaliaram como fluência verbal fonológica
em parkinsonianos, Souza e Cardoso (2014) as correlacio-
naram ao tempo de escolaridade e à preservação cognitiva
dos sujeitos analisados.
Por essa amostra, pode-se perceber que a maioria dos
estudos desenvolvidos no campo biomédico considera os
problemas de linguagem de sujeitos parkinsonianos como
decorrentes de aspectos orgânicos afetados pela doença.
Dentre esses aspectos, destacam-se os motores (como ob-
servamos nos estudos sobre as alterações vocais e articu-
latórias nos sujeitos parkinsonianos) e os cognitivos, em
sentido neurofisiológico (como observamos nos estudos
que aproximam a linguagem das chamadas funções cog-
nitivas superiores).
Os aspectos da linguagem são entendidos, ainda, a
partir de um ou outro subsistema da língua. Com efeito,
são privilegiados: seu plano fonético-fonológico, visto
especialmente a partir dos movimentos articulatórios
envolvidos na produção da fala e do resgate de palavras,
entendido como fonêmico; ou seu plano léxico-semân-
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tico, no interior de um recorte bastante restrito do que
se entende por resgate de palavras de caráter semânti-
co. Como consequência dessa redução, outros aspectos
constitutivos da linguagem, como os discursivos, sequer
são considerados. Dito de outro modo, ao investigarem
os aspectos da linguagem relacionados à doença de Par-
kinson, os estudos de natureza biomédica fazem recortes
que privilegiam um ou outro aspecto da língua e tendem
a considerar os problemas nos aspectos da linguagem in-
vestigados como resultantes de alterações orgânicas carac-
terísticas da doença.
No entanto, como já observamos, no interior da lite-
ratura biomédica há trabalhos que mencionam aspectos
que poderíamos considerar como “hesitações” e que, dada
a sua importância para a nossa reflexão, trataremos em
separado a seguir.
A doença de Parkinson e as hesitações
A presença de hesitações4 na conversação de sujeitos
com doença de Parkinson é aspecto que, a nosso ver, de-
veria merecer mais atenção da literatura, dada a sua larga
ocorrência na fala desses sujeitos. Esse aspecto desperta
nosso interesse, em particular, por termos tido acesso ao
banco de dados de sujeitos parkinsonianos do Grupo de
Pesquisa “Estudos sobre a Linguagem” (GPEL/CNPq),
bem como pela nossa experiência clínica com sujeitos aco-
metidos por essa doença. Nessa experiência, notamos que
a presença das hesitações é fator que se destaca mesmo
entre os familiares dos sujeitos, que fazem comentários do
tipo: “Parece que ele está gaguejando.”
4 Para um olhar mais aprofundado acerca das hesitações, ver Nasci-
mento (2005).
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 25
Embora as hesitações sejam frequentes nesses sujeitos,
em nossa pesquisa bibliográfica encontramos poucos es-
tudos, desenvolvidos no campo biomédico, que tratam
de questões que poderíamos entender como hesitações
na fala de sujeitos parkinsonianos. Vamos mencioná-los e
descrever como as caracterizam.
Darley, Aronson e Brown (1969), em um estudo clássi-
co sobre aspectos da linguagem em sujeitos com doença de
Parkinson, observaram, na fala desses sujeitos, monopich,5
monoloudness,6 aspereza vocal, consoantes imprecisas e o
que entendem por silêncios inapropriados. A descrição
dos autores, mais especificamente no que diz respeito aos
silêncios, remete às chamadas pausas silenciosas, marca
hesitativa apontada, por exemplo, por Marcuschi (1999;
2006). O estudo dos autores mencionados aponta, portan-
to, para a ocorrência de uma marca hesitativa, as pausas
silenciosas, na fala de sujeitos parkinsonianos, entendidas
por eles como pausas inapropriadas.
Em outro trabalho, Logemann et al. (1970) chamam
a atenção para os silêncios inapropriados – considerados
como desordem prosódica – na fala de sujeitos com doen-
ça de Parkinson. Os autores mencionam ainda desordem
na velocidade da fala, como curtos movimentos rápidos
de fala e variações na sua velocidade.
O trabalho de Canter (1963), já mencionado, também
faz alusão a aspectos que podemos entender como hesi-
tativos. O autor estudou o que chamou de duração (velo-
cidade de fala, número de pausas e média da duração de
pausas, frases e sílabas) na fala de sujeitos com doença de
Parkinson. Nesse estudo, concluiu que não há diferença
considerável entre o que chamou de duração na fala de
5 Percepção da ausência ou da pouca variação da frequência funda-
mental da fala.
6 Percepção da ausência ou da pouca variação da intensidade da fala.
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26 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
sujeitos com Parkinson e na fala de sujeitos sem a doença.
No entanto, encontrou três sujeitos, dentre os parkinso-
nianos, que apresentavam características peculiares, a seu
ver, especialmente com relação à velocidade de fala. Dois
sujeitos apresentaram fala mais lentificada – o método
utilizado pelo autor para observação da fala foi a leitura
oral de um texto – e o terceiro apresentou velocidade de
fala muito mais rápida do que os demais. Canter ressaltou
que, embora não tenha constatado diferenças sistemáticas
de velocidade na fala dos sujeitos parkinsonianos e dos
sujeitos não parkinsonianos, haveria parkinsonianos que
apresentariam marcantes desvios em relação a esse aspec-
to, o que poderia indicar uma importante característica do
distúrbio da fala desses sujeitos (Canter, 1963).
Ainda com relação às pausas, Streifler e Hofman
(1984) detectaram, na fala de sujeitos com doença de Par-
kinson, o que denominaram de aumento do tempo das
pausas.
No interior dos estudos que abordam aspectos que po-
deríamos considerar como hesitações, encontramos tam-
bém o trabalho de Spencer e Roger (2005). Estes autores
investigaram o que chamaram de programação motora na
disartria hipocinética – denominação dada às dificuldades
de fala em sujeitos afetados pela doença de Parkinson.
Para tanto, observaram o que chamaram de “tempo de
reação” dos membros, na busca de uma relação entre as-
pectos da fala e a programação/execução de movimentos
dos membros. Supuseram que os sujeitos parkinsonianos
teriam reduzida habilidade para mudar rapidamente de
um movimento (ou programa motor) para outro. Para os
autores, esse prejuízo ocorreria devido à dificuldade refle-
xa de modificar ou inibir uma resposta presente. Segundo
eles, “a transição deficiente para um novo movimento
pode se tornar particularmente pronunciada quando uma
mudança rápida de uma resposta preparada para uma
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 27
nova resposta é solicitada” (p.348). Esses mesmos sujeitos
teriam dificuldade em manter programada a informação
anterior à iniciação do movimento.
Os autores concluíram, então, que representações
programadas diminuem antes e durante a iniciação do
movimento. Tais hipóteses a respeito da programação do
movimento seriam consistentes, segundo eles, com sinto-
mas da disartria hipocinética. Portanto:
Comportamentos de fala, tais como pausas colo-
cadas anormalmente, dificuldade de progressão do
enunciado e dificuldade em iniciar a articulação, são
características de falantes com DP e poderiam resultar
de uma dificuldade em manter a programação motora
da fala. Adicionalmente, a habilidade reduzida para
mudar a programação motora da fala seria consistente
com comportamentos da fala tais como dificuldade em
parar uma resposta presente, hesitações marcadas
entre segmentos de movimento e, ocasionalmente,
inabilidade em mudar de um movimento para o outro.
Estes comportamentos são realmente evidentes na fala de
indivíduos com doença de Parkinson. (Spencer; Rogers,
2005, p.348; destaques nossos)
Nota-se que os autores destacam as hesitações como
aspecto presente na fala de sujeitos com doença de Parkin-
son e atribuem sua ocorrência a dificuldades relacionadas
à programação do movimento. No entanto, assim como
nos trabalhos mencionados anteriormente, eles destaca-
ram somente as pausas ao tratar das hesitações na fala de
parkinsonianos.
Outros trabalhos estudaram características das hesi-
tações a partir do que consideraram disfluências na fala
de parkinsonianos. Nos sujeitos que analisaram, Teixeira,
Nascimento e Cardoso (2010), por exemplo, identifica-
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ram como disfluências predominantes as omissões, segui-
das de adições e de falsos inícios. Já Goberman, Blomgren
e Metzger (2010), ao analisarem disfluências no início
de palavras e entre palavras, identificaram como mais
característica delas a chamada repetição de movimentos
(repetições de sílabas e partes de sílabas) e as posturas ar-
ticulatórias fixadas (com ou sem passagem de ar audível).
Brabo, Minett e Ortiz (2014), por fim, destacaram como
disfluências mais recorrentes as pausas, as (assim chama-
das) interjeições, as repetições de palavras, de segmentos
de palavras, de sentenças, de sílabas e de sons, as revisões
e os bloqueios.
Com base nos trabalhos mencionados, podemos con-
cluir que, além de serem raros os estudos que abordam as
hesitações no interior da literatura biomédica, eles seguem
a tendência dos demais produzidos por essa literatura,
considerando-as como problemas de fala. Mesmo mencio-
nando as hesitações, a maior parte desses estudos restrin-
ge-se a investigar apenas uma marca hesitativa: as pausas
silenciosas. Aqueles que conseguem ampliar o escopo de
análise, contemplando outros tipos de marcas, veem-nas
previamente como disfluências, mantendo-se a tendência
de considerarem-nas como problemas ou alterações.
Outro aspecto que chama a atenção nesses trabalhos
são os recursos metodológicos que utilizam para anali-
sar características da fluência em parkinsonianos. Com
exceção de Goberman, Blomgren e Metzger (2010), que
incluem, em sua amostra de análise, um trecho de fala não
direcionado (embora ainda não se trate de uma situação,
mesmo que simulada, de conversação), os demais traba-
lhos analisam amostras de leitura em voz alta, de repeti-
ções de frases ou de descrições de cenas, desconsiderando
outras em que, a nosso ver, as hesitações privilegiadamen-
te se mostrariam: aquelas extraídas de situações menos
controladas e mais próximas dos reais usos da linguagem.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 29
Numa outra perspectiva, no entanto, pesquisas como
as de Chacon e Schulz (2000), Zaniboni (2002), Witt
(2003), Oliveira (2003), Dias (2005) e Nascimento (2005),
sustentadas em teorias linguístico-discursivas, investiga-
ram aspectos da linguagem de parkinsonianos, com desta-
que para as hesitações. Veremos a seguir alguns resultados
dos estudos desses autores.
Ao investigar a função das pausas na atividade ver-
bal de dois sujeitos com doença de Parkinson, Chacon
e Schulz (2000) observaram, dentre outros aspectos, a
coexistência de “pausas de duração muito longa e pausas
de duração bastante reduzida” (p.58). De acordo com os
autores, essa variabilidade estaria relacionada ao que está
contemplado no tópico conversacional e/ou à menor ou
maior dificuldade do sujeito em desenvolvê-lo durante
a atividade enunciativa. Nota-se, na interpretação dos
autores, um olhar que vai além dos possíveis comprome-
timentos de ordem orgânica que afetariam os aspectos da
linguagem: a interpretação da variabilidade de duração
das pausas na conversação de sujeitos parkinsonianos sus-
tenta-se em preceitos desenvolvidos no campo de estudos
da organização textual-interativa.
De modo semelhante, Zaniboni (2002) investigou o
funcionamento das pausas, em especial em início de tur-
nos, em sessões de conversação de sujeitos com doença de
Parkinson e de sujeitos sem lesão neurológica. A autora
notou uma diferença na atividade discursiva desses dois
grupos de sujeitos no que se refere ao número de ocor-
rências de pausas iniciais (que foi maior), bem como às
características acústicas dessas pausas no primeiro grupo.
Para Zaniboni, essa diferença pode ser entendida, longe
de possíveis problemas de ordem motora, como um pro-
cesso alternativo de enunciação ao qual os sujeitos com
Parkinson recorreriam para manter a efetividade da ativi-
dade dialógica.
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Na mesma perspectiva, Dias (2005) estudou não ape-
nas as pausas, mas também outros tipos de hesitações pre-
sentes no início de enunciados na atividade discursiva de
sujeitos com e sem lesão neurológica. Os dados encontra-
dos pelo autor permitiram-lhe concluir que a “condição
de sujeitos parkinsonianos os torna menos propensos a
controlar, ao mesmo tempo, a deriva dos sentidos e a de-
riva dos movimentos do aparelho fonoarticulatório na
atividade enunciativa” (p.55).
Dentre os trabalhos desenvolvidos nessa perspectiva,
destaca-se o de Nascimento (2005). A partir da hipótese
de que as hesitações (incluindo as pausas) funcionariam
como marcas de momentos de tensão entre elementos
linguístico-discursivos, a autora analisou dados extraí-
dos de sessões de conversação de um sujeito com doença
de Parkinson e de um sujeito sem patologia neurológica,
atentando não somente aos inícios dos enunciados, mas
também às hesitações no interior deles.
Na análise, a autora centrou-se na relação entre as
marcas de hesitação e os trechos de fala relacionados com
elas, procurando observar: o tipo de noção semântica en-
volvido nessa relação; se ocorria uma contenção ou uma
abertura para a deriva no dizer; se as tensões envolvidas
predominavam no eixo sintagmático ou no paradigmático
da linguagem; se as ações sujeito/língua ocorriam ante-
cipadamente ou em reparação à materialização de pon-
tos de deriva. Com esse olhar, Nascimento caracterizou
cinco tipos de funcionamento hesitativo: especificações,
avaliações, mudanças de orientação de sentido, retomadas
e tropeços.
As especificações seriam, segundo a autora, momen-
tos nos quais o trecho que sucede o fenômeno hesitativo
(trecho B) complementaria o trecho que antecede a hesita-
ção (trecho A), encontrando-se os dois trechos, portanto,
numa mesma orientação de sentido. Nessa relação, o fe-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 31
nômeno hesitativo (H) evidenciaria “uma ação recíproca
sujeito–língua no sentido da precisão de expressões se-
mânticas”, marcando momentos de contenção da deriva
em ambos os eixos: no sintagmático, no qual a atitude do
falante seria a de tentar controlar antecipadamente o apa-
recimento de elementos coocorrentes, tendo em vista uma
organização sintagmática pretendida; e no paradigmático,
no qual a hesitação seria o aspecto que evidenciaria a coo-
corrência de elementos e se anteciparia à ocorrência de um
único elemento selecionado de um paradigma.
As avaliações seriam momentos nos quais os fenôme-
nos hesitativos evidenciariam uma suspensão do dizer
em que, numa atitude reflexiva, o sujeito estaria, em B,
projetando-se no sentido de dar maior precisão a A. Ao
contrário das especificações, nesse subtipo de fenôme-
no hesitativo haveria maior evidência da ação do sujeito
sobre a língua, na medida em que este se voltaria para o
seu próprio enunciado. Nas avaliações, H marcaria pontos
de reflexão, e não de materialização da deriva.
No terceiro tipo caracterizado pela autora, a relação
A–H–B seria tal que B se constituiria, em relação a A,
numa mudança de orientação de sentido na qual a ação
sujeito–língua se daria, em H, numa atitude antecipatória,
ocorrendo mudança de assunto, ou numa atitude repara-
dora, em que haveria materialização de escolhas paradig-
máticas recusadas em favor de outras. Na mudança de
orientação, H marcaria um ponto em que o dizer se ancora
e, ao mesmo tempo, introduz a deriva.
Nas retomadas, de acordo com a autora, B remeteria
a um dizer A enunciado anteriormente ao dizer que ante-
cede imediatamente H. Seria um momento no qual, pela
ação sujeito–linguagem, ocorreria o resgate da orientação
do dizer e a retomada do mesmo eixo paradigmático, pos-
sibilitando, portanto, a contenção da deriva.
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O último tipo caracterizado por Nascimento, e que
nos interessou mais diretamente, diz respeito ao que no-
meia como tropeços. Esse funcionamento, assim como as
retomadas, também ocorreria, de acordo com a autora, de
modo reparador, mas seria marcado, no eixo da contigui-
dade (sintagmático), por elementos fonético-fonológicos.
Além dessa diferença, nos tropeços, B e A apresentariam
uma relação aparentemente “fraca” com H.
O trabalho dessa autora, a nosso ver, traz importante
contribuição, ao analisar diversas marcas hesitativas (não
apenas as pausas) no início e no interior de enunciados. É
relevante também por não se restringir a marcas, mas ana-
lisar o funcionamento do fenômeno hesitativo no discur-
so. Entretanto, pela amplitude do seu objeto de estudo, a
autora conseguiu realizar apenas uma primeira caracteri-
zação do funcionamento hesitativo de sujeitos parkinso-
nianos e não parkinsonianos. Seria necessário, portanto,
verificar a eficácia de cada uma das cinco categorias por
ela apresentadas.
No nosso trabalho, demos maior atenção ao que
Nascimento considera como tropeços e que caracteri-
zamos, pelas razões que apresentaremos adiante, como
deslizamentos do dizer em contexto fonético-fonológico
recorrente.
Esse maior interesse decorreu, por um lado, de um in-
teressante aspecto abordado por Nascimento. De acordo
com a autora, apenas esse funcionamento hesitativo apre-
sentou como foco de tensão a predominância da língua no
plano fonético-fonológico. Nos demais funcionamentos,
foi possível recuperar uma relação semântica fortemente
marcada entre as hesitações e os trechos que as circunda-
vam, de modo diferente dos chamados tropeços, funcio-
namento no qual a autora teve dificuldades para recuperar
negociações de ordem semântica.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 33
Por outro lado, o interesse pela investigação desse fun-
cionamento se deveu ao fato de termos observado uma
tendência predominante na literatura biomédica no que
diz respeito ao estudo dos aspectos linguísticos em sujeitos
com doença de Parkinson: as características observadas nos
chamados tropeços, nessa literatura, são entendidas como
resultantes de problemas motores. Portanto, nosso interes-
se pelo estudo mais aprofundado desse subfuncionamento
hesitativo orientou-se pela busca de outras características
da linguagem nele envolvidas, além das fonético-fono-
lógicas, já apontadas por Nascimento, sobretudo as de
natureza discursiva. Para aprofundarmos a investigação
do funcionamento hesitativo foco do trabalho que origi-
nou este livro, tomamos como fundamentação teórica as
contribuições dos estudos linguístico-discursivos.
Contribuições dos estudos discursivos
Em “Análise automática do discurso”, estudo publi-
cado pela primeira vez em 1969, Michael Pêcheux propõe
“definir os elementos teóricos que permitem pensar os
processos discursivos e sua generalidade”. Para tanto, o
autor (1990) se apoia na ideia de que
[...] os fenômenos linguísticos de dimensão superior à
frase podem efetivamente ser concebidos como um fun-
cionamento, mas [este] funcionamento não é integral-
mente linguístico, [...] e [...] não podemos defini-lo senão
em referência ao mecanismo de colocação dos protago-
nistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos
“condições de produção” do discurso. (p.78)
Destacaremos algumas considerações que ele faz sobre
as condições de produção do discurso, conceito funda-
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mental para melhor explorar aspectos observados em nos-
sos dados, como veremos adiante.
De acordo com Pêcheux (1990), todo discurso – toma-
do aqui como o fio do discurso, como a própria materiali-
dade discursiva – é produzido a partir de certo lugar, “no
interior de uma formação social dada” (p.77). Esse lugar
é caracterizado pelas condições de produção do discurso,
que envolvem: relações entre o discurso e elementos que o
sustentam e que se opõem a ele; relações entre o discurso
e outros discursos, anteriores, que são evocados e susten-
tam o discurso atual.
Podemos pensar, portanto, que, durante a produção
de um discurso, entendido como materialidade linguís-
tica, existe uma série de relações que permitem que ele
se sustente ou determinam a sua organização linguísti-
ca. Ao pensar na produção do discurso, Pêcheux rompe
com a ideia, bastante comum no campo da Linguística
na sua época, de transmissão de informação. De acordo
com o autor, o que ocorre entre interlocutores são efeitos
de sentido.
Voltando à ideia do autor de que todo discurso é pro-
duzido de determinado lugar, os próprios sujeitos partici-
pantes da produção discursiva seriam “lugares ocupados
na estrutura de uma formação social” (Pêcheux, 1990,
p.82). Ele denomina de A e B as posições ocupadas numa
formação discursiva pelos protagonistas do discurso.
Portanto, “o que funciona nos processos discursivos é
uma série de formações imaginárias que designam o lugar
que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a ima-
gem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do
outro” (p.82).
O autor vai além, ao apontar que o referente também
faz parte das condições de produção. Considera então a
imagem que A e B têm do referente, que se trata também
de um objeto imaginário, não pertencente, assim como os
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 35
protagonistas do discurso, à realidade física da produção
discursiva.
Apoiamo-nos, no nosso trabalho, nas considerações
de Pêcheux sobre as condições de produção do discur-
so, sintetizadas por Brandão (2002), as quais abrangem
o contexto histórico-social, os interlocutores (os quais,
de acordo com Pêcheux, seriam posições imaginárias
assumidas na formação discursiva), o lugar de onde tais
interlocutores falam, bem como a imagem que fazem de
si, do outro e do referente. Todos esses elementos, aponta
Brandão, constituem a instância verbal de produção do
discurso.
Ainda acerca das condições de produção do discurso,
a contribuição de Pêcheux, para Brandão (2002), estaria
no fato de não considerar a presença física de organismos
humanos individuais, mas a representação de “lugares
determinados na estrutura de uma formação social”. Tal
concepção fundamenta a noção de sujeito que adotamos
no nosso trabalho. Portanto, nos distanciamos de con-
cepções empíricas de sujeito, bem como de teorias que
o reduzem a seus processos conscientes, como fonte do
(seu) dizer.
Outro aspecto que foi de grande interesse para o nosso
estudo, relacionado com a concepção de sujeito, é a noção
de esquecimento.
Em estudo publicado em 1975, Pêcheux e Fuchs apro-
fundam a teorização sobre o discurso, lançando mão de
conceitos como os de formação ideológica, formação dis-
cursiva e assujeitamento. Não nos aprofundaremos, aqui,
em tais conceitos. Apresentaremos apenas um breve re-
corte acerca do que esses autores chamam de esquecimen-
to no 1 e esquecimento no 2, para melhor compreensão da
noção de sujeito.
De acordo com Pêcheux e Fuchs (1990), “elementos
ideológicos não discursivos (representações, imagens li-
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gadas a práticas etc.)” atravessam as formações discursi-
vas. No entanto, ao produzir uma sequência discursiva, o
sujeito não recupera essa pluralidade presente no interior
da formação discursiva que possibilita tal sequência. Nas
palavras dos autores, a discursividade presente entre as
formações discursiva/ideológica “se esvanece aos olhos
do sujeito falante” (p.168).
Trata-se nesse caso do chamado esquecimento no 1. O
sujeito se esquece daquilo que o descentraliza e atravessa.
Perde, ao enunciar, a dimensão da pluralidade de elemen-
tos intrínsecos ao discurso. Tem a “ilusão de estar na fonte
do sentido” (p.169). No entanto, lembram os autores,
embora a produção de uma sequência discursiva esteja
calcada fundamentalmente em uma ilusão, esta é necessá-
ria para que essa produção possa ocorrer.
Além desse esquecimento, que permite ao sujeito ter
a ilusão de ser fonte do dizer, para os autores ele esquece
também “o processo pelo qual uma sequência discursiva
concreta é produzida [...] como sendo um sentido para
o sujeito” (p.169). Trata-se, nesse caso, do chamado es-
quecimento no 2, que remete à ilusão da transparência
do dizer.
Com relação a esse último esquecimento e à multiplici-
dade de sentidos que atravessa uma sequência discursiva,
em cada uma delas “a produção de sentido é estritamente
indissociável da relação de paráfrase”. Há, então, segundo
os autores, elementos relacionados que, embora não apre-
sentem o mesmo sentido, estabelecem relações de sentido,
pertencendo às mesmas “famílias parafrásticas”. No en-
tanto, em razão do esquecimento no 2, o sujeito se esquece
dessas relações que compõem uma sequência discursiva.
Aqui, cabe relembrar a concepção de sujeito adota-
da por Pêcheux e Fuchs (1990): um sujeito constituído
por múltiplos outros sujeitos, atravessado por formações
ideológicas e que, ao produzir uma sequência discursiva,
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 37
necessariamente por meio dos esquecimentos no 1 e no 2,
assume a ilusão de sujeito como origem do seu próprio
dizer e da transparência de sentido do dizer.
Como já dissemos, apoiamo-nos na concepção de
Pêcheux sobre sujeito, considerando-o como uma posição
imaginária, ocupada no interior de uma formação dis-
cursiva. Trata-se, ainda, de um enunciador descentrado
que, ao enunciar, esquece a multiplicidade que o constitui
e imagina ocupar o lugar de centro do dizer, lugar tam-
bém imaginário, conforme o autor. Na medida em que
a multiplicidade e a dispersão são características de uma
formação discursiva, ao produzir a materialidade do dizer
o sujeito está em constante negociação com os outros que
o atravessam, no interior da formação discursiva que sus-
tenta esse dizer.
Além das contribuições de Pêcheux, foram essenciais,
para a nossa análise, as considerações de Authier-Revuz
acerca de sujeito, discurso e heterogeneidades enunciati-
vas. Também distanciando-se da noção de sujeito como
fonte do dizer, essa autora destaca sua constituição no
interior do discurso. Ao considerar o discurso como he-
terogêneo, produto de interdiscursos, o próprio sujeito,
constituído nessa heterogeneidade, também é visto por ela
como heterogêneo.
Para sustentar essa concepção, Authier-Revuz (1990)
se baseia no dialogismo bakhtiniano, na medida em que
“as palavras são, sempre e inevitavelmente, as palavras
dos outros” (p.26), uma vez que todo enunciado seria atra-
vessado por outros discursos. Segundo a autora, o dialo-
gismo bakhtiniano permite entender que, na produção de
sentido do discurso, haveria um “centro exterior constitu-
tivo, aquele do já dito, com o que se tece, inevitavelmente,
a trama mesma do discurso” (p.27).
Para sustentar a hipótese de que o sujeito, pensado no
interior do discurso, também é heterogêneo, ela se apoia
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38 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
ainda em Pêcheux, pois este entende o discurso como pro-
duto de interdiscursos. Com base nessa concepção, du-
rante a produção do discurso – também visto aqui como o
fio do discurso –, o interdiscurso seria ignorado pelo sujei-
to, que, “na ilusão, se crê fonte deste seu discurso, quando
ele nada mais é do que o suporte e efeito” (Authier-Re-
vuz, 1990, p.27). De acordo com a autora, portanto, o
sujeito que enuncia não recupera todo o interdiscurso que
o atravessa e o constitui como tal. Não recupera, portanto,
a heterogeneidade que o constitui.
Além da heterogeneidade advinda da própria cons-
tituição do sujeito no interior do interdiscurso, ou seja,
a partir das construções históricas que o constituem, a
autora justifica a sua heterogeneidade também apoiada
em preceitos da psicanálise – mais especificamente, da
psicanálise freudiana e lacaniana. De acordo com esses
preceitos, o sujeito é heterogêneo porque é descentrado,
cindido, atravessado pelo inconsciente. Não entraremos
nesse mérito, o do sujeito do inconsciente, mas aborda-
remos o apontamento da autora acerca do que denomina
“ilusão necessária” de sujeito. Trata-se, de acordo com
Freud, do fato de que “não há centro para o sujeito fora
da ilusão e do fantasmagórico, mas que é função desta
instância do sujeito que é o eu ser portadora desta ilusão
necessária” (Authier-Revuz, 1990, p.28).
Apoiando-se em Freud, bem como em Pêcheux (e,
em alguma medida, em Bakhtin), a autora considera o
sujeito heterogêneo, seja do ponto de vista psíquico, seja,
em nosso entender, do ponto de vista sócio-histórico, e
denomina essa sua heterogeneidade radical de “heteroge-
neidade constitutiva”.
Em ruptura com o EU, fundamento da subjetividade
clássica concebida com o interior diante da exterioridade
do mundo, o fundamento do sujeito é aqui deslocado,
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 39
desalojado, “em um lugar múltiplo, fundamentalmente
heterônimo, em que a exterioridade está no interior do
sujeito”. Nesta afirmação de que, constitutivamente,
no sujeito e no seu discurso está o outro, reencontram-se
as concepções do discurso, da ideologia, e do inconsciente
[...]. (Authier-Revuz, 1990, p.29)
Haveria, no entanto, uma ilusão de “eu” que susten-
taria a imagem do sujeito autônomo, a qual é vista pela
autora, com base em Pêcheux e Fuchs (1990), como uma
“ilusão necessária constitutiva do sujeito”, que permitirá
a recuperação, na materialidade discursiva, de negocia-
ções com os outros constitutivos da produção do seu dis-
curso. Foram essas negociações que nos mobilizaram no
percurso restante do nosso trabalho.
Para Authier-Revuz (1990), as negociações do sujei-
to com a heterogeneidade constitutiva do (seu) discurso
podem se mostrar na materialidade linguística. Trata-
-se da “heterogeneidade mostrada”, aquela que inscreve,
linguisticamente, o outro na cadeia do discurso, a qual
ocorreria “como formas linguísticas de representação de
diferentes modos de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva do discurso” (p.26).
Esses diferentes modos de negociação, na heteroge-
neidade mostrada, podem se dar como formas marcadas
e não marcadas. As formas marcadas seriam calcadas no
princípio de denegação. Nelas ocorreria uma tentativa do
sujeito de proteger-se dos outros que o atravessam/cons-
tituem. Já nas formas não marcadas, haveria certa diluição
entre o sujeito e os outros. A heterogeneidade se mostra-
ria, nesses casos, de modo mais sutil, ocorrendo incerteza
em relação aos outros, e não uma tentativa de denegação/
proteção, como acontece nas formas marcadas.
Em nosso trabalho, as formas marcadas de heteroge-
neidade mostrada assumiram estatuto especial, uma vez
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40 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
que Authier-Revuz inclui entre elas as hesitações. Mas,
para melhor entendermos de que maneira as hesitações
indiciariam momentos de negociação entre a entidade que
se marca como “eu” no fio do discurso e os outros que a
constituem, apoiamo-nos na formulação de Tfouni sobre
o conceito de deriva.
Para Tfouni (2008), na própria obra de Saussure e de
Jakobson, é possível recuperar indícios que, interpretados
à luz de contribuições da análise do discurso e da psicanáli-
se, permitem problematizar uma concepção de mensagem
supostamente organizada, bem como seu caráter linear de
comunicação, de um pensamento organizado nos moldes
cartesianos. Para essa problematização, a autora se apoia
em uma concepção de linguagem, discurso e sujeito que
rompe com a ideia de linearidade e transparência. Nessa
problematização também ocorre um distanciamento da
ideia de sujeito como origem do seu dizer. Isso porque ha-
veria na linguagem processos que escancaram, que rom-
pem a aparente unidade do sujeito e apontam para a sua
constituição heterogênea. Exemplos desse escancaramen-
to ou quebra de unidade aparente seriam, dentre outros,
aqueles nos quais, na produção discursiva, “falta uma
palavra”, sendo rompido o fluxo da enunciação. Nessas
situações, em que se abre espaço ao inesperado, a deriva
(sempre latente na produção discursiva) se mostra.
[...] a deriva é constituída pela palavra que falta, tão
importante quanto a que é enunciada, atestando a pre-
sença da alteridade. Essa outra voz que de repente se faz
ouvir ao lado das palavras do sujeito: eis a deriva insta-
lada. Nesse processo ocorrem esquecimentos, lapsos, [e
no que mais diretamente nos interessa] hesitações, falsos
começos. (Tfouni, 2008, p.76)
Assim contextualizada por Authier-Revuz e Tfouni,
desvelou-se para nós, mais claramente, a possibilidade
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 41
de uma visão enunciativo-discursiva das hesitações, visão
adotada na análise de nossos dados.
A partir de tal concepção de sujeito, concebemos a
materialidade linguística como um lugar no qual se mos-
tram as constantes negociações do sujeito com este/estes
outro/outros, bem como onde a deriva pode, a qualquer
momento, se instalar. As hesitações seriam, então, mo-
mentos em que a heterogeneidade que constitui o sujeito
escapa dele e é escancarada.
Assumimos no nosso trabalho uma concepção de su-
jeito como descentrado e heterogêneo, dada a sua cons-
tituição num processo discursivo fundamentalmente
múltiplo e disperso e o seu atravessamento por processos
inconscientes.
A materialidade discursiva (ou o “fio do discurso”, ou,
ainda, o “fluxo discursivo”) assumiu para nós o estatuto
do lugar em que podem ser marcadas, linguisticamente,
as negociações sujeito–outros. Uma das maneiras pela
qual essa negociação é mostrada – e que constituiu aspecto
central do nosso trabalho – são as hesitações, ou seja, os
momentos marcados dessa negociação.
As hesitações, nesse caso, seriam momentos em que
a heterogeneidade que constitui o sujeito escapa ao seu
controle e é escancarada, momentos nos quais, portanto,
a deriva se mostra, podendo ou não, como veremos em
nossa análise, ser controlada.
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2 ASPECTOS METODOLÓGICOS
O banco de dados
Os dados analisados no trabalho que originou este
livro fazem parte de um material reunido no projeto “Ati-
vidade discursiva oral e escrita de sujeitos parkinsonianos:
formação de um banco de dados”. O objetivo foi obter
registros de sessões de conversação entre um documen-
tador e sujeitos com doença de Parkinson e sujeitos sem
diagnóstico de lesão neurológica. Além das sessões de
conversação, o material também reuniu amostras de escri-
ta dos mesmos sujeitos, versando sobre diferentes temas.
O objetivo maior do projeto foi formar um banco de dados
para estudo dos aspectos enunciativo-discursivos da lin-
guagem, tanto em condições consideradas normais quan-
to em condições diagnosticadas como patológicas.
O projeto do banco foi elaborado por integrantes
do Grupo de Pesquisa “Estudos sobre a Linguagem”
(GPEL/CNPq), que busca uma intersecção entre conhe-
cimentos oriundos das áreas médica, fonoaudiológica e
linguística em suas investigações, daí a preocupação em
coletar dados de sujeitos com e sem lesão neurológica.
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44 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Foram coletadas amostras de conversação e de escrita
de quatro sujeitos com diagnóstico neurológico de doença
de Parkinson, dois do sexo feminino e dois do sexo mascu-
lino, com idades entre 40 e 74 anos, com diferentes graus
de escolaridade e profissões.
Também foram coletadas amostras de conversação
e de escrita de três sujeitos sem comprometimento neu-
rológico, dois do sexo feminino e um do sexo masculi-
no, também com idades entre 40 e 74 anos. Tais sujeitos
foram escolhidos por terem idade, grau de escolaridade,
profissão e procedência geográfica que se assemelhavam
aos dos sujeitos parkinsonianos.
Aconteceram oito sessões de conversação e escrita com
cada um dos sujeitos com doença de Parkinson (DP), com
intervalos de aproximadamente quatro meses entre elas, e
quatro sessões de conversação e escrita, com intervalos de
cerca de oito meses entre elas, com os sujeitos sem lesão
neurológica.
Com relação às amostras de conversação, todas foram
norteadas por temas relacionados à vida cotidiana dos su-
jeitos. As sessões tiveram duração aproximada de 40 mi-
nutos, e tanto as de escrita quanto as de conversação foram
realizadas pelo mesmo documentador. As propostas de
escrita envolveram a produção de bilhete, carta, propa-
ganda, receita culinária, reportagem de jornal e relato da
vida diária dos sujeitos.
Todas as sessões de conversação foram registradas em
gravação digital de áudio e de vídeo. Para as gravações em
áudio, foi utilizado um gravador Sony, tipo DAT (digital
audio tape), modelo TCD-D8, acoplado a um microfone
Sony, modelo ECM-MS957, colocado a uma distância
de cerca de 30 centímetros dos sujeitos. Optou-se pelo
uso de equipamentos digitais para garantir melhor quali-
dade acústica para as gravações. O uso de um microfone
multidirecional visou maior fidedignidade dos sons cap-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 45
tados para a gravação, sobretudo porque alguns sujeitos,
principalmente os parkinsonianos, apresentam reduzida
intensidade vocal.
As gravações em vídeo foram realizadas com uma câ-
mera digital Sony, modelo DCR – DVD 203. Além do re-
gistro acústico, as filmagens possibilitaram a observação
de aspectos que a gravação não permite verificar, como os
momentos de silêncio, nos quais ocorria a movimentação
dos articuladores.
As sessões de conversação coletadas para o projeto
foram transcritas com base nos trabalhos de Preti e Ur-
bano (1988), Marcuschi (1998) e Koch (2000). As normas
de transcrição utilizadas foram aquelas propostas para a
transcrição das entrevistas coletadas pelo Projeto Nurc
(Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta),
complementadas pela proposta de Marcuschi (1998) para
o estudo das hesitações. Essa escolha foi de grande rele-
vância para o trabalho. Como ressalta esse autor, a trans-
crição já é, por si, uma primeira análise dos dados.
Embora as normas escolhidas para transcrição não
tenham sido propostas com o mesmo objetivo do Pro-
jeto Nurc, possibilitaram a descrição de elementos con-
versacionais, bem como a identificação de aspectos da
hesitação.
As transcrições, com base nas propostas metodológi-
cas mencionadas, foram organizadas em turnos conver-
sacionais – aquilo que o falante faz ou diz enquanto tem
a palavra, incluindo a possibilidade do silêncio (Marcus-
chi, 1998; Hilgert, 2001). Momentos de sobreposição de
falas, bem como intervenções de interlocução, caracteri-
zadas por comentários do tipo “ah tá”, “nossa”, “ãhã”,
não foram consideradas como mudança de turno. Para
Marcuschi (1998), as sobreposições são uma “produção
durante o turno do falante corrente, de modo que elas não
caracterizam mudança de turno” (p.18).
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46 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
O recorte
Os dados que utilizamos compõem um material do
projeto “Atividade discursiva oral e escrita de sujeitos
parkinsonianos: formação de um banco de dados”, con-
forme já explicitado.
O material foi escolhido por um motivo especial. O
campo da Fonoaudiologia apresenta particular interesse
para o estudo de sujeitos afetados por lesões encefálicas,
em especial no que se refere aos aspectos da linguagem
comprometidos por tais lesões. Entretanto, tradicional-
mente, os estudos sobre a linguagem, nesses sujeitos,
inclusive aqueles que envolvem a doença de Parkinson,
extraem os dados linguísticos da aplicação de testes, os
quais, como salientam Lima et al. (1997), “se apegam a
simples fatos gramaticais, como sílabas, frases e palavras
soltas”.
Foi possível observar esse tipo de metodologia em tra-
balhos produzidos no campo biomédico – no qual a maior
parte dos estudos da Fonoaudiologia se sustenta – acerca
das questões de linguagem nos sujeitos com doença de
Parkinson.
Spencer e Rogers (2005), por exemplo, observaram os
movimentos envolvidos na produção dos sons da fala a
partir da repetição de palavras monossilábicas. Já Canter
(1963) voltou-se para o que chamou de comportamento
de fala de um grupo de parkinsonianos a partir da leitura
oral de um texto, embora tenha salientado a importância
da análise de conversas espontâneas.
Ao discutir esse tipo de metodologia em estudos sobre
sujeitos afásicos, Coudry (1996) observou que a tendência
dominante é a obtenção de dados a partir da aplicação
de testes de linguagem que se concentram na repetição
isolada de palavras ou de listas de palavras, ou, ainda, na
leitura oral de frases ou pequenos textos, para investigar
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 47
a produção da fala. Esses testes ressaltam as dificuldades
de linguagem desses sujeitos e excluem as atividades que
permanecem após a lesão.
Entretanto, considerando a afirmação de Marcuschi
(1999) sobre as hesitações, foco do nosso estudo, carac-
terizadas como marcas linguísticas que colaboram para a
organização conversacional e/ou evidenciam o processo
de organização conversacional, elas dificilmente pode-
riam ser analisadas utilizando-se métodos tradicionais de
pesquisa.
Não poderíamos, portanto, basear nosso trabalho em
métodos de pesquisa recorrentes na Fonoaudiologia. O
projeto do qual selecionamos os dados para a realização do
nosso estudo se distancia dos métodos calcados nos testes,
exatamente porque, durante a coleta dos dados, procurou
aproximar-se o máximo possível das atividades conversa-
cionais cotidianas.
Apresentamos a seguir o recorte realizado e os motivos
que nos levaram a utilizar apenas parte dos dados que
compõem o banco.
Para a realização da nossa pesquisa, selecionamos ape-
nas uma sessão de conversação de um sujeito com doença
de Parkinson, que chamamos de NL, devido sobretudo
ao grande número de informações relevantes para a nossa
análise que uma única sessão de conversação pode conter.
Com essa opção, ficou descartada, portanto, a realização
de uma análise de caráter quantitativo a respeito de pro-
blemas de linguagem que afetam os sujeitos com esse tipo
de lesão neurológica. Priorizamos a observação de aspec-
tos bastante específicos do fenômeno hesitativo em um
sujeito parkinsoniano.
Como nosso interesse foi observar como aspectos da lin-
guagem – mais especificamente, o fenômeno hesitativo –
funcionam, em relação às possíveis limitações ou alte-
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rações impostas pela doença de Parkinson, optamos por
uma sessão realizada em momento mais avançado da co-
leta de dados, tendo em vista uma possível progressão da
doença no sujeito participante da pesquisa. Selecionamos
então a sétima sessão de conversação de NL.
O sujeito da pesquisa
NL, do sexo masculino, cursou o ensino médio (sem
concuí-lo) e é mestre de obras aposentado. Na data da
gravação da sessão de conversação utilizada, ele tinha 59
anos. Foi diagnosticado com doença de Parkinson cerca
de sete anos antes da data da sessão de conversação.
A amostra de conversação
Com a amostra de conversação em mãos, nossa primei-
ra preocupação foi rever cuidadosamente sua transcrição,
atentando sobretudo para os momentos de marcas hesi-
tativas, aspecto de maior interesse para o nosso trabalho.
Para fazermos essas revisões, além da transcrição original,
baseamo-nos nos registros em vídeo e áudio.
Durante a revisão, de modo semelhante ao que foi feito
na primeira transcrição da sessão, apoiamo-nos em normas
propostas por Preti e Urbano (1988), Marcuschi (1998) e
Koch (2000). Apesar de a transcrição, seguindo o olhar de
tais autores, ter sido organizada em turnos conversacio-
nais, nosso recorte das hesitações não foi feito com base
nesses turnos, e sim na própria incidência das hesitações.
Isso se deve [...] ao modo como compreenderemos
a linguagem durante a análise dos dados: um fenômeno
heterogêneo em que um de seus aspectos, e não o único,
é a troca de sujeitos falantes. Além disso, seria incoerente
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 49
priorizarmos somente um dos aspectos que envolvem o
fenômeno heterogêneo da linguagem, uma vez que nossa
proposta é a de observar as hesitações como um fenômeno
que seria marca de múltiplos “outros” que constituem o
discurso. (Nascimento, 2005, p.69)
Encerrada a revisão da transcrição, destacamos as mar-
cas hesitativas que, pela relação estabelecida com o todo do
enunciado, caracterizavam-se como o funcionamento que,
em nosso trabalho, foi caracterizado como deslizamento
em contexto fonético-fonológico recorrente. Portanto, o
aspecto mais peculiar desse funcionamento, que funda-
mentou a obtenção dos nossos dados, foi o fato de todas as
marcas hesitativas destacadas apresentarem uma relação
fonético-fonológica fortemente marcada com diversos vo-
cábulos do enunciado em que ocorriam.
As hesitações
Para a identificação das marcas hesitativas, apoiamo-
-nos em Marcuschi (1999; 2006). Embora o olhar teórico
do autor seja diferente daquele que embasou nosso traba-
lho, é incontestável a sua contribuição para todos os traba-
lhos voltados ao estudo do fenômeno hesitativo.
Entendendo as hesitações como fenômenos intrín-
secos da oralidade, relacionadas com o que se considera
planejamento linguístico, portanto, “indícios de dificul-
dades de processamento cognitivo/verbal localizados na
estrutura sintagmática” (Marcuschi, 2006, p.63), o autor
desenvolve amplo estudo sobre as hesitações. Nele, busca
estabelecer o que chama de características formais das he-
sitações, identificando, para tanto, as marcas hesitativas e
suas principais características.
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Apresentaremos a seguir as principais marcas des-
critas pelo autor. Exemplificaremos cada uma com pelo
menos um exemplo retirado do nosso corpus que ilustre
as representações realizadas durante a transcrição/iden-
tificação das marcas hesitativas, as quais podem ocorrer
isoladamente ou combinadas com outras marcas. Procu-
ramos dar exemplos que ilustrem ambas as ocorrências.
• Pausas silenciosas: constituem-se em silêncios,
prolongados ou não, que ocorrem como rupturas em
lugares não previstos pela sintaxe. As pausas hesita-
tivas, para Marcuschi, diferem dos silêncios intertur-
nos, manifestações discursivas que podem até mesmo
constituir um turno. Diferem também das pausas de
juntura, já que estas seriam sintaticamente previstas.
Na transcrição dos dados, utilizamos o sinal + para
representar as pausas silenciosas. O número de sinais nas
transcrições variou de acordo com a duração das pausas.
Assim, usamos + para pausas mais breves e ++ para pau-
sas mais longas, como no exemplo que se segue.
Exemplo 1 (com interrupção – pausa silenciosa longa –
interrupção – pausa preenchida – alongamento – inter-
rupção – gaguejamento)
NL agora pra subir n/ ((sinal de negação com a cabeça))
++ n/ eh:: nov/ n/no nivelado mesmo + é até bom mas
na subida
• Pausas preenchidas: trata-se de interrupções da
sequência temporal da fala, em geral marcadas acus-
ticamente por expressões hesitativas. Muitas costu-
mam ser precedidas e/ou seguidas de pausas silen-
ciosas breves. Para a transcrição desse tipo de marca,
utilizamos as formas “ah”, “eh”, “uh”, conforme
convencionadas pelas normas de transcrição do Pro-
jeto Nurc.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 51
Exemplo 2 (com pausa silenciosa – pausa preenchida)
NL às vezes eu vou andar dou três quatro passos + eh::
normal depois eu já + descontrolo
• Alongamentos hesitativos: constituem o prolon-
gamento de duração de segmentos da fala, em geral
vocálicos. Costumam ocorrer, segundo Marcuschi,
predominantemente em final de palavra, sobretudo
de palavras monossilábicas, ou em sílabas finais áto-
nas. O autor (1999; 2006) observa que certos alon-
gamentos funcionam como coesão rítmica e são fre-
quentes sobretudo na formação de listas, e outros,
comumente acompanhados de elevação do tom, que
operam como ênfase. Em geral, salienta, quando, no
interior de uma palavra, os alongamentos são coe-
sivos ou enfáticos e recaem em sílabas tônicas, não
constituem hesitações, por isso, não foram levados
em consideração nos nossos dados. Na transcrição,
para representar os alongamentos hesitativos, utili-
zamos o sinal :: logo à direita da letra correspondente
ao fonema alongado. O menor ou maior número
desses sinais (:: ou :::) representa a menor ou maior
duração do prolongamento, segundo a nossa percep-
ção auditiva da primeira transcrição.
Exemplo 3 (com alongamento – pausa silenciosa –
interrupção – pausa silenciosa – alongamento)
NL [porque: + porque depo/ + pra:: andar de a pé +
descendo é um beleza e/eu ando quase normal
• Repetições hesitativas: são reduplicações de pala-
vras, de grupos de palavras ou de frases. Podem
incidir tanto sobre itens funcionais quanto sobre
itens lexicais. Sua representação foi feita por meio da
transcrição de todos os elementos repetidos.
Exemplo 4 (com repetição de palavra)
NL [depois] da/da/da janta teve doce
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52 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Exemplo 5 (com repetição de grupo de palavras)
NL [parece que/parece que não é porque eles não vêm
me ver eu não vou] também né?
• Gaguejamentos: consistem em repetições trunca-
das de fonemas ou de sílabas não significativas para
a compreensão da mensagem (Marcuschi, 1999).
Nos nossos dados, essa marca também foi represen-
tada através da transcrição dos segmentos repetidos.
Exemplo 6 (com gaguejamento)
NL s/s/s/s/ esses tempo nós teve lá + (foi lá passear)
Além das marcas apontadas por Marcuschi, outras
merecem destaque:
• Incoordenações: de acordo com Dias (2005), seriam
alterações de características acústicas de segmentos
da fala, com mudança prosódica que pode fazer variar
até mesmo a tessitura vocal. Assim como as demais,
as incoordenações podem ocorrer combinadas com
alguma outra marca de hesitação.
Indo além da proposta de Dias, consideraremos como
incoordenações as alterações articulatórias, como impre-
cisões na emissão de fonemas.
Na transcrição dos nossos dados, as incoordenações
foram descritas no interior de uma estrutura com duplo
parêntese logo após a ocorrência da marca, conforme o
exemplo que se segue.
Exemplo 7 (com incoordenação e alongamento – inco-
ordenação)
NL faz + porque nós nós f:ez ((incoordenação durante
o alongamento)) di/ veio direto da fisioterapia ((incoor-
denação durante o trecho “fisiotera”))
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 53
• Interrupções: outra marca encontrada em nossos
dados. Trata-se de cortes após a emissão de qualquer
segmento linguístico, seja fonético-fonológico, lexi-
cal ou sintático, o qual pode ou não ser retomado na
sequência da produção do enunciado.
Com base na concepção que adotamos sobre o que
são interrupções, as marcas hesitativas denominadas por
Marcuschi de falsos inícios também foram consideradas
como interrupções no nosso trabalho. Isso porque, se-
gundo o autor, os falsos inícios seriam todos os inícios
de unidades sintáticas oracionais com algum problema,
refeitos ou retomados com elementos como itens lexicais,
marcadores discursivos etc. Portanto, de acordo com o
autor, os chamados falsos inícios envolveriam o corte de
uma unidade sintática, daí terem sido considerados como
interrupções no nosso trabalho.
Além dos elementos linguísticos após os quais ocorre
um corte, uma interrupção, observamos que nem sem-
pre era a emissão dos segmentos que sofria interrupção.
Muitas vezes, o sujeito parkinsoniano realizava apenas
os movimentos de articulador necessário para a produção
de determinados segmentos e também os interrompia,
retomando em momento posterior a produção desses seg-
mentos no enunciado. Denominamos também esses mo-
vimentos articulatórios interrompidos de interrupções.
Para a representação dos momentos de interrupção, nos
nossos dados, usamos uma barra inclinada /, ou a descri-
ção, entre parênteses duplos (( )), do movimento articu-
latório interrompido.
Exemplo 8 (com interrupção – pausa silenciosa – inter-
rupção)
NL nã/ + p/ (na hora) que tomo os dois quase junto
mas pode ser os dois (mesmo)
Ocorre, nesse trecho, interrupção de “não” e de /p/.
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54 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Exemplo 9 (com alongamento – pausa silenciosa –
interrupção)
NL é: + ((após pausa faz movimento com os lábios,
próximo ao /v/)) voltava tudo
Acontece, nesse trecho, interrupção de /v/.
Mais importante do que apenas identificar as marcas
hesitativas, nossa preocupação foi observar a relação de
cada uma com os trechos que as circundavam e, especial-
mente, com o processo discursivo em que ocorriam.
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3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao estudar o funcionamento hesitativo na conversação
de um sujeito parkinsoniano e de um sujeito sem lesão
neurológica, Nascimento (2005) descreveu cinco desses
funcionamentos, dentre os quais destacamos aquele que
a autora denominou de tropeços. Em seu estudo, ela ob-
servou uma peculiaridade nos chamados tropeços, em
relação aos demais funcionamentos hesitativos: apenas
eles apresentaram como foco de tensão predominância no
plano fonético-fonológico da língua.
Foi exatamente a partir dessa peculiaridade que ini-
ciamos nossas investigações acerca dos deslizamentos em
contexto fonético-fonológico recorrente. O trabalho de
Nascimento foi, portanto, fundamental para o desenvol-
vimento de nossa pesquisa.
Características dos deslizamentos
Com base nas considerações feitas até o momento a
respeito do fenômeno hesitativo, bem como nos apon-
tamentos de Nascimento (2005) sobre o funcionamento
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hesitativo foco do estudo que originou este livro, identi-
ficamos, na sessão de conversação de NL, 48 marcas he-
sitativas que, pela relação que apresentam com os trechos
que as circundam,1 podem ser consideradas como per-
tencentes ao funcionamento deslizamentos em contexto
fonético-fonológico recorrente, o qual podemos observar
na ocorrência a seguir.
Ocorrência 1
JN o senhor estudou nove anos que o senhor fez até
o primeiro
NL ++ diz que é ((incoordenação)) diz que é doze por-
que tem/ tinha uma:: + como é que eles falava q/ d/
q/ + depois do quarto ano tinha um:: + fazia uma: +
((estalo linguoalveolar)) esqueci como é eles falava
MA2 [admissão]
NL [admi/ primeira] admissão né?
Nesse trecho, não emerge no fio do discurso, como de-
sejado por NL, a palavra “admissão”, mas há várias mar-
cas de sua falta no enunciado, como “tem/tinha”, “como
é que eles falava”, “tinha um::”, “fazia uma:+”. Dentre
as marcas dessa falta, são singulares as interrupções que
envolvem os fonemas /k/ e /d/, o que, ao nosso ver, se
deve ao fato de que o preenchimento da falta, no momento
em que ocorrem essas interrupções, acontece por meio de
sons presentes em outras palavras do enunciado, como
1 Não nos apoiaremos no recorte metodológico utilizado por Nas-
cimento (2005), que estabelece a relação A–H–B no interior do
enunciado em que H ocorre. Nosso recorte será outro, na medida
em que os trechos que circundam as marcas hesitativas não neces-
sariamente ficarão restritos aos limites dos enunciados em que elas
ocorrem.
2 MA representa uma participante da sessão de conversação em
análise – a esposa do sujeito NL.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 57
“que”, “doze”, “porque” e “tem”,3 no trecho que antece-
de a marca, e “depois”, “quarto”, “esqueci” e “como”, no
trecho que a sucede.
Notamos nessa ocorrência uma peculiaridade do fun-
cionamento hesitativo foco do nosso estudo: há elementos
fonético-fonológicos marcados na hesitação que são re-
correntes no todo do enunciado de NL (antecedendo e/ou
sucedendo a marca hesitativa).
No entanto, não é apenas no interior de um mesmo
enunciado que essa recorrência é observada, como vere-
mos a seguir.
Ocorrência 2
JN ((tossiu)) aí é mais [fácil]
NL [((movimento labial próximo a /f/))] mais tranquilo
mesmo + quando vem a laje já/já é outra coisa mas +
cê tem que administrar ela bem fazer bem feito né +
porque ela pode cair pode trincar
Nessa ocorrência, destacamos a interrupção em /f/.
Encontramos esse fonema nas palavras “fazer” e “feito”,
e fonema semelhante no ponto e no modo de articulação
em “vem” (no trecho que sucede a marca). No entanto,
a presença desse mesmo elemento fonético-fonológico é
verificada também na palavra “fácil”, presente no enun-
ciado da documentadora (JN), que imediatamente ante-
cede o enunciado de NL.
Podemos pensar que o funcionamento deslizamento
em contexto fonético-fonológico recorrente está presente
não apenas na linearidade de um mesmo enunciado, mas,
ainda em um recorte linear, na linearidade entre enuncia-
dos de diferentes interlocutores.
3 Incluímos a palavra “tem” nessa série dada a semelhança de modo
e ponto de articulação entre /t/ e /d/.
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58 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Um aspecto interessante desse momento hesitativo é
que ele parece mostrar uma tensão léxico-semântica entre
“fácil”, presente no enunciado de JN, e “tranquilo”, que
emerge no enunciado que se segue de NL, o qual mos-
tra esse momento de tensão envolvendo o fonema /f/ de
maneira concomitante à fala de sua interlocutora. Nesse
sentido, a recorrência de /f/ (não apenas no enunciado
de NL, mas, inclusive, entre o seu enunciado e o de sua
interlocutora) pode indiciar uma tensão (léxico-semânti-
ca) entre “fácil” e “tranquilo” provocada pela produção
discursiva entre os dois interlocutores.
As duas ocorrências que analisamos, como vimos,
apontam para uma relação entre a marca hesitativa e
elementos que a circundam, tanto no enunciado de NL
quanto no de JN. Ou seja, há movimentos entre as marcas
e esses trechos circundantes. Dois tipos de movimentos
podem ser detectados nas ocorrências hesitativas de NL,
como veremos a seguir.
Ocorrência 3
JN + mas o senhor tá comendo muitas vezes no dia
ou não?
NL + t/tem dia ++ q/que eu (bato) três vezes por dia
+ quatro
JN pouco demais
Nesse momento da sessão, NL e JN conversam sobre
as frequentes dores de estômago que NL sente. No enun-
ciado dele, emergem as palavras “três” e “quatro”. No-
tamos uma proximidade (morfológica e semântica) entre
essas palavras, o que permite pensar que elas pertencem
à mesma família parafrástica, estando em relação, por-
tanto, não apenas no interior da língua, mas sobretudo
no processo discursivo. No enunciado, elas encontram-se
em relação de conflito, marcado por elementos como a
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 59
pausa silenciosa longa (++); a própria emergência, num
primeiro momento, da palavra “três” e, pouco depois, da
palavra “quatro”; e ainda pela ocorrência de uma pausa
breve antecedendo essa última palavra.
Fator fundamental para nossa análise é que esse conflito
também aparece marcado por uma tensão fonético-fono-
lógica. Podemos notar, nesse trecho, a marca hesitativa
representada pela interrupção envolvendo os fonemas /t/
e /k/, os quais ocorrem também no trecho que sucede a
marca, nas palavras “tem”, “que” e “bato” e, mais precisa-
mente, nas próprias palavras em conflito: “três” e “quatro”.
Entendemos que, nesse caso, acontece um movimento
que caracterizamos como de antecipação. Isso porque a
marca hesitativa – a interrupção de /t/ e /k/ – antecipa
a emergência desses dois fonemas em palavras que ocor-
rerão em momento posterior no mesmo enunciado, de
forma recorrente.
De acordo com as teorias psicolinguísticas, esse mo-
vimento de antecipação poderia ser visto como marca de
planejamento da fala. Com efeito, para Goldman-Eisler
(1958), o ato de fala estaria baseado num plano anteci-
patório que apresenta uma estrutura específica, sendo as
hesitações indicadoras desse processo.
Para nós, no entanto, numa perspectiva discursiva,
o movimento que denominamos de antecipação corres-
ponderia a um momento de negociação no qual relações
entre elementos fonético-fonológicos (como /t/ e /k/) e
semânticos (como “três” e “quatro”) se caracterizariam
como outro conflitante para o sujeito. Apoiando-nos em
Pêcheux e Fuchs (1990), consideramos que se trata, nes-
ses momentos, de tensões entre elementos em relações
parafrásticas (no eixo paradigmático), que acabam por se
escancarar na cadeia (eixo sintagmático) do enunciado.
Considerando as famílias parafrásticas como cons-
titutivas da produção discursiva, elas estariam sempre
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presentes no eixo paradigmático da produção discursiva,
quer ocorram ou não momentos hesitativos no fio do dis-
curso. Os deslizamentos em contexto fonético-fonológico
recorrente, portanto, indiciariam momentos privilegiados
de observação de conflitos presentes no interior de famí-
lias parafrásticas.
No movimento de antecipação, porém, além de um
momento que revela conflitos no interior de uma mesma
família parafrástica, o próprio eixo sintagmático poderia
se apresentar como elemento desencadeador de conflito,
já que a própria recorrência de elementos em sequência na
cadeia do enunciado pode aparecer como turbulenta para
o sujeito. Em outras palavras, o movimento de antecipa-
ção parece justamente expor tensões inerentes à interseção
de eixos no processo discursivo.
Mas não são apenas movimentos isolados de antecipa-
ção que podem ocorrer nos deslizamentos, como veremos
a seguir.
Ocorrência 4
NL depois cê vem os ferro por cima + então tem pes-
soa que não faz nada só fura um buraquinho lá peque/
f/f/ rasinho né + põe um ferrinho fininho + aí a constru-
ção vai dar trincamento
Nesse trecho, destacamos a marca hesitativa repre-
sentada por gaguejamento envolvendo o fonema /f/.
Observamos a presença desse fonema tensionado nas pa-
lavras “ferrinho” e “fininho” no trecho em seguida ao
gaguejamento. Notamos ainda um complexo de relações
(morfológicas, sintáticas e semânticas) entre as palavras
“pequeno” (que não chega a ser concluída, mas é par-
cialmente mostrada antes da hesitação), “rasinho” e “fi-
ninho”, o que as colocaria em relação ao mesmo tempo
paradigmática e sintagmática.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 61
Verifica-se mais claramente, nesse complexo de re-
lações, o movimento de antecipação, representado pela
tensão no fonema /f/ e por sua persistência no trecho
que sucede a marca hesitativa. No entanto, ao observar
esse trecho, também podemos verificar a presença recor-
rente do fonema /f/. Isso evidencia, a nosso ver, outro
movimento característico dos deslizamentos, que consi-
deramos como de continuidade. Nele, o elemento foné-
tico-fonológico tensionado recorrentemente emerge em
palavras que antecedem a marca hesitativa. É o que se re-
vela na ocorrência 4, na medida em que as palavras “ferro”,
“faz” e “fura” já trazem o elemento /f/ tensionado no
gaguejamento.
Por que entendemos esse movimento como de
continuidade?4
4 A própria literatura biomédica poderia fornecer elementos para
interpretarmos o movimento de continuidade. Essa literatura
descreve o que entende como lentidão na execução dos movi-
mentos (Murdoch, 1997) e ainda alterações motoras envolvendo
a manutenção de representações cognitivas e motoras, bem como
a habilidade de rapidamente transicionar entre movimentos e/
ou arranjos cognitivos (Spencer e Roger, 2004) nos sujeitos afe-
tados pela doença de Parkinson. A partir dessas concepções,
poderíamos pensar que a continuidade do movimento observada
na ocorrência 4 poderia relacionar-se a um possível prolonga-
mento da movimentação articulatória envolvida na produção de
/f/ ao longo do enunciado. Portanto, a movimentação articula-
tória envolvida na produção desse fonema, recorrente em várias
palavras do enunciado, ecoa após as palavras em que ocorre –
no momento da marca hesitativa. Poderíamos entender também
que, do ponto de vista biomédico, nessa ocorrência e em outras
semelhantes o sujeito parkinsoniano, após programar a execução
motora do fonema /f/ para produzir as palavras “ferro”, “faz” e
“fura”, apresentaria dificuldades para rapidamente estabelecer
outro arranjo motor/cognitivo. Uma marca dessa dificuldade
seria novamente, portanto, a emissão de /f/ em um momento de
gaguejamento. No entanto, embora a literatura biomédica possa
fornecer subsídios para entendermos alguns aspectos do que esta-
mos chamando de continuidade – ainda que restritos aos aspectos
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62 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Observando a ocorrência 4, podemos notar que o fo-
nema /f/ aparece pela primeira vez nesse enunciado, jus-
tamente na palavra “ferro”. Se ampliarmos o recorte de
análise, veremos que esse enunciado, na sessão de conver-
sação, segue-se após um longo enunciado de NL, no qual,
além da recorrência do fonema /f/ (realçada, a seguir,
em bold), “ferro” aparece como elemento em ênfase5 no
processo discursivo.
NL + cê fura uma valeta né + que é uma valeta quer
dizer um buraco ++ quadradinho assim + fundo + mais
ou menos isso aqui ((mostrando com as mãos)) + e ali
você coloca uma viga armada + de ferro + são hum::
+ tem: quatro ferro de comprido e m::ilhares ((incoor-
denação)) de + ( ) ao redor ( ) + assim amarrando + e
depois cê + primeiro cê vai fazer as broca que a broca
é um: cê faz um: buraco fundo + porque a tendência é
aqui ó é igual cê fazer assim + cê faz um buraco + cê
enche de concreto + aí vai pendendo s/ aí não desce
se cê fizer assim cê não dá conta ó + ou senão aqui ó
+ puxa cê tem um dedo puxa pra cê ver + então cê
fura um buraco fundo de uns três quatro metro pra
baixo + mais ou menos assim ó + e aquilo você enche
de concreto
JN + ah tá
orgânicos comprometidos pela doença –, assumimos privilegiada-
mente outro ponto de vista para explicar os movimentos presentes
nos deslizamentos.
5 Entendemos que “ferro” recebe ênfase pelo seu valor semântico,
por se tratar da matéria-prima do elemento sobre o qual NL dis-
corre, a saber, viga armada. Recebe ainda ênfase sintática, por
emergir imediatamente antes e depois da expressão parentética.
Podemos pensar também em uma ênfase prosódica, pois esse ele-
mento é, no enunciado em destaque, delimitado em suas duas
margens por pausas silenciosas.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 63
NL depois cê vem os ferro por cima + então tem pes-
soa que não faz nada só fura um buraquinho lá peque/
f/f/ rasinho né + põe um ferrinho fininho + aí a constru-
ção vai dar trincamento
Observe-se que a pausa que delimita o final do ele-
mento em ênfase, “de ferro”, marca também uma abertura
para a deriva, ponto a partir do qual, de forma parentéti-
ca, emergem dizeres explicativos sobre “viga” e “broca”,
talvez em decorrência da antecipação (Pêcheux, 1990)
que NL faz em relação a um provável desconhecimento,
por parte de JN, do que seriam, na construção civil, uma
“viga” e uma “broca”. Em outras palavras, com a pausa
abre-se um “buraco de significação”, momento no qual
“a deriva tanto pode instalar-se concretamente – criando
um non-sense, ou a dispersão – quanto pode ser evitada”
(Tfouni, 2008, p.74).
Como “não existe uma liberdade completa de seleção,
visto que o simbólico tem suas delimitações, e também
porque a palavra que vai entrar ali já está comprome-
tida com o contexto” (id., ibid.), o que emerge na ca-
deia são justamente elementos bastante comprometidos
pelo contexto enunciativo-discursivo. Esse comprome-
timento reforça-se no enunciado a seguir (aquele corres-
pondente à ocorrência 4, no qual o gaguejamento f/f/
ocorre), já que inicia exatamente pelo retorno do elemen-
to em ênfase. Esse retorno, portanto, indicia um momen-
to de autoria na enunciação, na medida em que, a partir
dessa posição discursiva, NL “consegue estruturar seu
discurso [...] de acordo com um princípio organizador
contraditório, porém necessário, visto que existe, no pro-
cesso de produção de um texto, um movimento de deriva
e dispersão de sentidos inevitável, que o autor precisa
‘controlar’ [...], a fim de dar ao seu discurso uma unidade
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aparente, com começo, meio e ‘fechamento’” (Tfouni,
2001, p.82-3).
Destaque-se, ainda, que esse retorno aparece ancorado
inclusive pela repetição “depois cê” (“depois cê vem os
ferro por cima”), expressão deixada em suspenso e que
provoca outro “buraco de significação” no enunciado
anterior.
“Ferro” é elemento central nesse momento do proces-
so discursivo. É interessante notar que, no significante
desse elemento, o fonema tensionado na marca hesitativa
aparece exatamente na sílaba acentuada. Além disso, no-
tamos no enunciado anterior uma grande ocorrência de
/f/ (nas palavras marcadas em bold), como já observado.
A marca hesitativa poderia representar um momento de
tensão que envolve tanto a importância discursiva de um
elemento, “ferro”, quanto a recorrência de /f/ em várias
palavras do enunciado.
Temos, assim, argumentos de várias naturezas que
justificariam nossa proposta de que, além de antecipa-
ções, ocorreria também um movimento de continuidade
de elementos fonético-fonológicos num enunciado, o qual
marcaria tensões entre elementos de diferentes planos do
processo discursivo.
Ressalte-se, no entanto, que a tensão observada em
diferentes planos desse processo pode envolver, conforme
verificamos na ocorrência 4, os dois movimentos (ante-
cipação e continuidade) na linearidade do enunciado. É
o que o gaguejamento de /f/ parece indiciar, na medida
em que, num movimento de antecipação, escancara um
complexo de relações (morfológicas, sintáticas e semân-
ticas) e, num movimento de continuidade, expõe tensões
envolvendo o plano fonético-fonológico, bem como a
tensão relacionada à importância discursiva do elemento
enfatizado, “ferro”.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 65
Vejamos agora uma ocorrência em que se pode verifi-
car outro tipo de continuidade.
Ocorrência 5
JN o prolopa é que dá: e o acneton
NL não ++ o prolopa não dá não
JN não tá dando não?
NL o prolopa (num dá/) o que dá é o acneton
JN + o acneton? + é tem gente que dá com o prolopa
também
NL nã/ + p/ (na hora) que tomo os dois quase junto mas
pode ser os dois (mesmo)
Ressalta, nesse trecho, a interrupção do fonema /p/
no interior de uma marca combinada que se caracteriza
por interrupção após “nã”, seguida de pausa silenciosa e
de interrupção após “p”. Notamos a repetição desse ele-
mento no trecho que sucede a marca hesitativa, na palavra
“pode”. Mas o trecho que nos interessa é o que antecede
a marca.
Nesse momento da sessão da conversação, o objeto
discursivo mais específico (no interior de um objeto dis-
cursivo mais geral: doença) são as dores de estômago men-
cionadas por NL, as quais estariam relacionadas ao uso
dos medicamentos prolopa e/ou acneton. É justamente
o conflito entre se apenas um (apenas acneton) ou ambos
(acneton e prolopa) provocam dor de estômago que parece
indiciado pela marca hesitativa, na medida em que NL,
após negar a ação de prolopa para eliminar suas dores – “o
prolopa (num dá/) o que dá é o acneton” –, parece admitir
essa possibilidade: “mas pode ser os dois (mesmo)”.
Portanto, a marca de hesitação pode indiciar uma ten-
são que envolve, simultaneamente, o plano fonético-fono-
lógico (a continuidade de /p/ após a repetição de prolopa
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e, de modo relacionado, sua antecipação em “pode”) e
léxico-semântico da língua (conflito entre elementos le-
xicais de uma mesma família parafrástica), no conflito
de NL de admitir ou não a possibilidade de que prolopa
provoca-lhe dores de estômago (“nã/ / pode ser”).
Destaca-se nessa ocorrência (que a diferencia da ocor-
rência 4) o fato de que, nela, o movimento de continui-
dade parece decorrer não exatamente da produção de um
enunciado por parte de NL, mas também da produção de
enunciados de sua interlocutora (JN). Podemos concluir
que esse movimento pode derivar de um momento em que
vemos escancarada a heterogeneidade do discurso, uma
vez que o momento de tensão no qual a marca hesitativa
ocorre se dá pela construção conjunta dos interlocutores.
As ocorrências 1 a 5 exemplificam características dos
deslizamentos em contexto fonético-fonológico recorren-
te identificadas na sessão de conversação em análise.
Nesse funcionamento hesitativo, a principal caracte-
rística é a tensão em um elemento fonético-fonológico que
ecoa no interior do enunciado em que a marca de hesitação
ocorre e entre enunciados, seja do próprio sujeito e/ou de
sua interlocutora.
Notamos ainda que os elementos fonético-fonológicos
podem recorrer no trecho que sucede a marca hesitativa,
figurando o movimento que chamamos de antecipação,
assim como no trecho que antecede a marca, caracterizan-
do o movimento de continuidade.
Lembremos que a antecipação e a continuidade são
movimentos observados na linearidade do enunciado.
Logo, partindo de uma análise linear, pudemos verifi-
car uma característica fundamental dos deslizamentos
em contexto fonético-fonológico recorrente: nesse fun-
cionamento, a repetição deslocada de um fonema parece
remeter predominantemente à configuração fonológica
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 67
de palavras adjacentes nos trechos que antecedem e/ou
sucedem a hesitação.
Mas, conforme pudemos verificar nas ocorrências 1 a
5, assim como nas demais que constituem nosso corpus,
a tensão provocada por essa repetição parece fortemente
vinculada a outros tipos de tensões, que remetem tanto
a elementos de outros planos da língua quanto do pro-
cesso discursivo. Em outras palavras, no interior de uma
análise linear, pudemos verificar que os deslizamentos
evidenciam momentos em que “outra voz [...] de repen-
te se faz ouvir ao lado das palavras do sujeito” (Tfouni,
2008, p.76).
No entanto, pensamos que uma análise que não se res-
trinja à linearidade permitiria a observação de outros ele-
mentos discursivos além dos aqui apontados, que é o que
procuramos demonstrar, para tentar recuperar as relações
entre os deslizamentos e os fatos constitutivos do processo
discursivo em que ocorrem.
Os deslizamentos e o processo discursivo
Como já exposto, nossa análise foi norteada por con-
tribuições de estudos discursivos, visando a melhor com-
preensão do funcionamento hesitativo deslizamentos em
contexto fonético-fonológico recorrente no interior do
processo discursivo. Para tanto, neste momento da aná-
lise, retomamos as concepções de Pêcheux (1990) sobre o
processo discursivo, procurando estabelecer relações entre
as características gerais desse processo e as características
mais específicas do processo discursivo em análise.
Para “definir os elementos teóricos que permitem pen-
sar os processos discursivos e sua generalidade”, Pêcheux
(1990) se apoia no conceito de condições de produção do
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discurso, mecanismo que, segundo ele, envolve os prota-
gonistas e o objeto do discurso.
A partir de suas considerações acerca das condições
de produção do discurso, temos que, num dado processo
discursivo, os protagonistas – chamados pelo autor de A e
B – “designam lugares determinados na estrutura de uma
formação social [...] marcados por propriedades diferen-
ciais determináveis” (p.82).
A sessão de conversação selecionada permite refletir
sobre os protagonistas desse processo discursivo (NL e
JN) e sobre os lugares – construídos, como lembra o autor,
a partir de formações imaginárias – nele ocupados por
esses sujeitos.
Essa sessão foi gravada no interior de um hospital,
local onde JN e NL se conheceram. JN, fonoaudióloga,
trabalhava no hospital na época das gravações e conheceu
NL por ocasião de um encontro em que estavam presentes
outros profissionais da saúde, com sujeitos com diagnós-
tico neurológico de doença de Parkinson.6
Foi nessas condições que se estabeleceu a relação entre
JN, ocupando o lugar de profissional da saúde, e NL, por-
tador de uma doença neurológica. No processo discursivo
analisado, com frequência emergiram indícios que apon-
tam para uma tensão na posição ocupada por NL, a partir
de uma possível imagem que ele faz de si mesmo nesse
lugar. Com efeito, parecem em conflito para NL, por um
lado, o lugar de manutenção/progressão da doença e, por
outro, o lugar da possibilidade de melhora, de redução
dos efeitos da doença, reforçada pelo imaginário social
(assumido por NL) de que JN ocupa o lugar do profis-
sional que pode prover essa melhora. Pudemos recuperar
6 Para maiores informações, ver Nascimento (2008).
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 69
indícios dessa relação imaginária no decorrer da sessão de
conversação, como no enunciado a seguir.
(a) NL hum:: +++ e que que que o quadro nosso (dimi-
nui/ t/) o que que tá acontecendo + tá piorando ou
melhorando? +++ [eu queria saber]
No entanto, NL dá pistas de que, na tensão de lugares
que ocupa, o dominante é o de sujeito doente. Indícios
dessa dominância podem ser recuperados nas falas que se
seguem.
(b) NL + eu ado:ro também + mas eu não posso comer
né?
JN + por quê?
NL por causa da gastrite
(c) NL + hoje eu tô até bem ++ mais difícil pra mim tá
sendo andar viu
[...]
JN + e como é que tá indo na fisioterapia?
NL vim de lá agora
JN + tá fazendo direitinho?
NL ah:: faz mas mais ou menos ( ) ++ devagar
demais né
Notamos, nos recortes em destaque, que o lugar da
doença é reforçado, conforme já destacamos. Por sua
vez, nos enunciados de JN, é a imagem de profissional da
saúde que aparece reforçada.
(d) JN + e as caminhada o senhor não tá fazendo?
[...]
NL [comecei] fazer esses tempo atrás depois parei
de novo
JN ai ih:: [mas o senhor/ + toda vez eu ouço essa
mesma história]
(e) JN + o senhor tá tomando os mesmos remédios?
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Nesses recortes, e em todo o processo discursivo, um
fator interessante é o conflito de lugares (ou dominância
de lugares) entre JN e NL. São frequentes, nos enunciados
de NL, tentativas de manter-se na posição de doente, en-
quanto, nos enunciados de JN, predomina a tentativa de
mudar esse lugar ocupado por NL. Podemos observar
indícios desse conflito no recorte a seguir.
(f) NL tô mais ou menos
JN + ei mas tá [tudo mais ou menos]
Esses conflitos, no entanto, a nosso ver, revelam uma
tentativa de manutenção dos lugares que predominante-
mente paciente e terapeuta ocupam.
Lembremos que “esses lugares estão representados
nos processos discursivos em que são colocados em jogo”
(Pêcheux, 1990). Temos, portanto, uma situação discur-
siva atravessada por um conflito em relação à imagem da
doença. Diante das formações imaginárias que atraves-
sam os lugares ocupados por JN e NL, podemos entender
por que, na sessão analisada, o objeto doença tornou-se
marcante como objeto discursivo. Em outras palavras,
a partir das relações pelas quais NL e JN marcam a si
próprios discursivamente, temos a doença (e não só a de
Parkinson) como um importante outro, que predomina
no processo discursivo.
Outros objetos discursivos emergem no processo em
questão, permeados não apenas pela dominância que ca-
racteriza o conflito entre JN e NL, o que constitui fato
digno de destaque. Temos, por exemplo, o objeto dis-
cursivo família, atravessado por outro tipo de formação
imaginária. Esse objeto emerge no discurso sobretudo em
função da presença de outro protagonista, MA, esposa de
NL. É em relação a essa protagonista que NL se marca,
discursivamente, em outra posição.
Vamos observar mais de perto essa relação.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 71
Todas as sessões de gravação com NL contaram com
a presença de MA, parcial ou totalmente. Ela chegou a
participar diretamente de momentos da conversa, como
se pode verificar nos recortes a seguir.
(g) NL e:u ((incoordenação)) fui lá umas duas vezes né
bem três né?
MA acho que sim
(h) JN estudou não? + até que série que ela fez?
NL ++ foi/ + até:: + quarto ano né?
MA até quinta
NL quinta + quinta série
Nesses recortes, o lugar a partir do qual MA se constitui
(ou é constituída por NL) como protagonista do discurso
é o do apoio, na medida em que funciona como ancoragem
da produção discursiva de NL. A própria presença de
MA na sessão sustenta a possibilidade dessa constitui-
ção discursiva, assim como outras formas de presença,
cujas marcas se extraem de informações que emergem no
decorrer da sessão, como o fato de MA acompanhar NL
também na fisioterapia.
Identificamos, portanto, distintos lugares ocupados
por NL em relação às suas interlocutoras, JN e MA. Com
a primeira, como vimos, há uma relação de oposição, de
distanciamento, enquanto com a segunda a relação é de
apoio, de ancoragem. Quanto a esses dois tipos de relação,
“encontram-se [...] formalmente diferenciados os discur-
sos em que se trata para o orador de transformar o ouvinte
[...] e aqueles em que o orador e seu ouvinte se identifi-
cam” (Pêcheux, 1990, p.85).
Na relação entre NL e JN, esta ocupa o lugar discur-
sivo de tentar “transformar o ouvinte”, ou seja, de afastá-
-lo da posição de sujeito doente. Já na relação entre NL e
MA, percebemos certa identificação, revelada pela possi-
bilidade de manutenção da posição de sujeito doente por
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NL, uma vez que, nessa posição, ele se mostra como al-
guém que necessita de apoio, de um lugar de ancoragem.
Embora as relações entre NL e suas interlocutoras te-
nham sido estabelecidas de maneiras distintas, a posição
ocupada por ele nos dois tipos de interlocução parece in-
timamente relacionada com o objeto doença, pelo menos
no processo discursivo em análise. Entretanto, como des-
taca Pêcheux (1990) a respeito das posições imaginárias
ocupadas pelos protagonistas do discurso, “é bastante
provável que esta correspondência não seja biunívoca, de
modo que diferenças de situação podem corresponder a
uma mesma posição, e uma situação pode ser representa-
da como várias posições” (p.82-3).
É o que ocorre com NL, na medida em que é possível
verificar, no mesmo processo discursivo, a emergência de
outro lugar do qual esse sujeito se marca quando é desloca-
do o objeto discursivo – de doença e família para trabalho.
Em outras palavras, numa mesma situação discursiva,
observamos diferentes jogos entre protagonistas e objeto.
Nas ocasiões em que emerge o objeto trabalho, o pró-
prio encadeamento discursivo torna-se o elemento mais
representativo da mudança de posição ocupada por NL.
Com efeito, seus enunciados tornam-se mais longos, ao
passo que os enunciados de JN mostram-se mais curtos e
menos frequentes, diferentemente do que se vê nos mo-
mentos em que a posição de sujeito doente está em evi-
dência, como mostra o recorte que se segue.
(i) NL [comecei] trabalhar de servente depois fui pra
pedreiro depois passei: mestre de obra + aí eu só
tinha o engenheiro/ + mais do que eu né ++ já fiz
muita casa e: pré:dio aqui em Uberlândia + admi-
nistração de ( )
JN uhum
NL + umas casa chique (minha filha)
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 73
Além dessas mudanças no encadeamento, quando o
objeto trabalho torna-se dominante no processo discursi-
vo, notamos também maior uso de enunciados explicati-
vos, o que pode indiciar uma projeção da imagem que NL
faz da interlocutora JN a respeito desse objeto discursivo:
a de que provavelmente não tem conhecimento acerca do
seu trabalho (a construção civil).
(j) NL isso é o reboque né + cê eh:: n/ ((incoordenação
durante alongamento)) pra colocar ali cê tem que
colocar as tábua que é o madeiramento + aí depois
cê reboca + passa massa + amacia as parede pra/
ficar (liso assim) + depois vem a pintura
Essas características mostram mudanças de posição de
NL, bem como de suas relações com o objeto discursivo
(o trabalho) e com sua interlocutora JN, colocada no lugar
do não saber nos momentos em que emerge o objeto tra-
balho. São esses os momentos em que NL ocupa a posição
de autor no processo discursivo de modo mais evidente,
na medida em que “retroage sobre o processo de produção
de sentidos, procurando ‘amarrar’ a dispersão que está
sempre virtualmente se instalando, devido à equivocidade
da língua” (Tfouni, 2001, p.83).
Em outras palavras, parece haver uma mudança no
próprio jogo de imagens e no lugar ocupado por NL
quando aflora no processo discursivo o objeto trabalho.
(k) NL (talvez diz que) tinha engenheiro que eu ( )
entendia mais do que ele né
JN + ah é?
NL é uai + tem muitos uai + (isso) porque a gente tá
dentro né e: + e ele tá: só faz o desenho + então às
vezes tem coisa que cê cê vai fazer ele quer que cê
faz mas não sabe como é que faz né + então você
vai ter que explicar pra ele como é que tem que
fazer e fazer
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Nesse recorte, NL se posiciona em lugar de superio-
ridade em relação aos colegas de profissão, incluindo os
engenheiros, diferentemente de quando, no processo dis-
cursivo, emergem os objetos doença e família, em relação
aos quais a imagem que parece fazer de si mesmo é a de
submissão, dependência e resistência a se deslocar.
Outra mudança de posição de NL pode ser observada
quando outro objeto aflora no processo discursivo: o ob-
jeto estudo. Vejamos o recorte a seguir.
(l) NL em Minas não tem não ++ doutorado não?
JN pra minha área não
NL não?
JN não + pro que eu queria não + mas assim: eu
vo::u mas + minha família tá aqui: né então + vou
sempre tá aqui + também
NL uhum ++ coisa boa
JN + mas é quatro anos né?
NL quatro anos? ++ mas é uma vez por semana?
JN + toda semana
NL pois é mas é uma vez só
Quando esse objeto emerge no processo discursivo,
há momentos, como no recorte anterior, em que o foco do
processo se volta para/sobre JN. Digno de destaque, nes-
ses momentos, é o fato de não ocorrerem deslizamentos em
contexto fonético-fonológico recorrente nos enunciados
de NL. Podemos pensar que, quando ele não está em foco,
as negociações com os outros que o constituem são menos
tensas, o que explicaria essa ausência de deslizamentos.
Em síntese, no processo discursivo analisado, dife-
rentes objetos discursivos circulam, tais como doença,
família, trabalho e estudo. Essa circulação, no entanto, é
imaginária, uma vez que remete a um complexo de rela-
ções imaginárias (entre protagonistas e objetos), reafirma-
das no processo discursivo. Como afirma Pêcheux (1990),
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 75
“o ‘referente’ pertence [...] às condições de produção [...]
se trata de um objeto imaginário (a saber, o ponto de
vista do sujeito) e não da realidade física” (p.83).
É importante ressaltar que a análise do processo dis-
cursivo aqui proposta não é linear. Logo, a emergência
de um objeto discursivo não supõe o desaparecimento de
outros, já que, constitutivamente, eles se sobrepõem (um
deles pode se mostrar como dominante em relação aos
demais) e se interpenetram no processo discursivo.
Assim, a partir dos objetos discursivos identificados,
procuramos observar como os deslizamentos em contexto
fonético-fonológico recorrente se mostram no interior do
desenvolvimento de cada um desses objetos.
Iniciamos com o objeto discursivo doença.
Ocorrência 6
NL [porque: + porque depo/ + pra:: andar de a pé +
descendo é um beleza e/eu ando quase normal
JN + ((tosse))
+ agora pra subir n/ ((sinal de negação com a cabeça))
++ n/ eh:: nov/ n/no nivelado mesmo + é até bom mas
na subida
Nessa ocorrência, destacamos a marca hesitativa com-
binada que envolve interrupções, pausa silenciosa e pausa
preenchida com alongamento. Destacamos a presença do
fonema /n/, tensionado durante a marca.
Na análise linear do enunciado, verificamos a ocorrên-
cia de /n/ no trecho que antecede a marca hesitativa – mais
especificamente, em “normal”, palavra que, em termos
prosódicos, recebe o acento que delimita um enunciado
fonológico (Nespor; Vogel, 1986), e em “não”, palavra que
possivelmente foi interrompida, como sugere o sinal de
negação com a cabeça –, bem como no trecho que sucede
essa marca – em “nivelado”, palavra que também recebe
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foco tanto prosódico quanto sintático, por meio da pala-
vra “mesmo”. Podemos pensar, portanto, em um desli-
zamento em contexto fonético-fonológico recorrente no
qual estariam presentes os movimentos de continuidade e
de antecipação. A marca hesitativa em destaque pode ser
entendida como um momento de tensão no qual o foco está
em um “outro” específico: a língua, de modo mais marca-
do, em seu plano fonético-fonológico.
No entanto, observando mais atentamente esse trecho,
no momento em que a hesitação ocorre, o mesmo foco de
tensão envolve também elementos de outras naturezas.
A ocorrência da hesitação mostraria, nesse sentido,
além da tensão fonético-fonológica, uma tensão semân-
tica entre andar na descida, no nivelado (no plano) e na
subida. NL é, portanto, capturado pela heterogeneidade
da língua e da linguagem, e não “contém” a deriva dos
múltiplos sentidos (mais especificamente, de direções de
movimento) de caminhar que poderiam aflorar na mate-
rialidade desse enunciado. Portanto, num momento de
negociação, um “outro” semântico irrompe.
Mas não são apenas os planos fonético-fonológico e se-
mântico que se marcam como elementos importantes para
entendermos esse momento de negociação. Estendendo a
análise para além do enunciado em que a marca hesitativa
ocorre – porém ainda em um recorte linear –, é possível
recuperar fatos das condições de produção do enunciado
que também atuariam no momento da hesitação:
JN mas lá:: perto da casa do senhor não é que tem uma
pista lá que o senhor faz caminhada?
NL tem
JN + e lá não é reto?
NL pois é mas tem o problema que cê tem que descer
né?
Nesse enunciado, pela descrição do local em que NL
reside, pode-se deduzir que perto da sua casa há uma des-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 77
cida, e no fim dela depara-se com uma pista plana, própria
para caminhadas. Logo, para ir até a pista, caminhar e
retornar à sua casa, NL precisaria fazer o seguinte trajeto:
descida – plano – subida. Notamos, pois, que o conflito
fonético-fonológico/semântico marcado no evento hesi-
tativo decorreria de uma tensão que envolve também um
elemento das condições de produção do discurso.
Pelos aspectos apontados até o momento, temos sub-
sídios para entender a hesitação nesse enunciado e o pró-
prio fenômeno hesitativo como um momento de tensão
que envolve “formas – linguísticas [fonético-fonológicas
e semânticas] e discursivas [elemento das condições de
produção]” (Authier-Revuz, 1998, p.14) – no interior
do processo discursivo. Encontramos, pois, indícios de
que muitos outros, localizados em diferentes planos da
língua e da linguagem, concorreriam nos momentos de
hesitação.
No entanto, além das negociações que foi possível
identificar pela análise linear do enunciado (ou dos enun-
ciados que circundam a marca hesitativa), há também
um elemento que se fez presente durante toda a sessão de
conversação, já apontado: trata-se da relação imaginária
que NL estabelece com a doença.
No enunciado anterior, NL aborda um aspecto que
ele próprio, em um momento específico da sessão de con-
versação, revela que é a maior dificuldade identificada e
atribuída à doença de Parkinson: a marcha. Logo, todo
o conflito – que, como vimos, envolve diferentes planos
da língua e pelo menos um elemento das condições de
produção – escancarado na marca hesitativa é norteado/
atravessado pela relação (discursiva) sujeito/doença.
Observamos ainda, no enunciado, pistas de que NL
ocupa um lugar de afastamento da doença, como na des-
crição da marcha durante a descida e no plano, em que sua
dificuldade seria menor. Entretanto, a posição de sujeito
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doente também se revela no enunciado, ao mencionar a
dificuldade da marcha durante a subida. Mesmo o afasta-
mento dessa posição não parece total, pois ele declara que
a marcha na descida é “quase normal” e andar no plano
(ou nivelado) “é até bom”. Vemos, portanto, na ocorrência
6, indícios do conflito relacionado às posições ocupadas
por NL em relação ao objeto discursivo doença, caracte-
rizado simultaneamente por marcas de afastamento e de
reafirmação da posição de doente.
Já no trecho que se segue ao enunciado da marca he-
sitativa, percebemos que a posição predominantemente
ocupada por JN – a de profissional da saúde – é reafir-
mada. A interlocutora questiona os argumentos de NL
com relação às dificuldades na marcha, emergindo, em
seu enunciado, tentativas de convencê-lo a caminhar com
mais frequência. Assim, a ocorrência 6 e o trecho que se
segue a ela ilustram a relação de oposição entre as posições
ocupadas por NL e por JN quando emerge o objeto dis-
cursivo doença. Como vimos, a posição discursiva de NL
é caracterizada pelo conflito afastamento/reafirmação da
doença, enquanto a posição de JN parece predominante-
mente atravessada pela imagem de quem possui subsídios
para deslocá-lo do lugar de doente.
Podemos pensar, então, que a doença é, nesse enuncia-
do, assim como em outros no interior da sessão, um lugar
imaginário no interior do qual são reforçadas as posições
paciente/terapeuta entre NL e JN, as quais se sustentam
por uma relação de oposição.
A doença pode ser entendida, então, como um objeto
discursivamente construído. Em outras palavras, muito
além de um problema neurológico que provocaria altera-
ções motoras, ela seria um objeto imaginário construído
por uma relação (entre interlocutores) plena de conflitos.
As dificuldades orgânicas – amplamente descritas pela li-
teratura biomédica – emergem nos enunciados de NL, so-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 79
bretudo como reforço ao lugar de sujeito doente que ocupa
quando o objeto discursivo doença está em evidência.
Os conflitos escancarados pela marca hesitativa em
destaque apontam para a materialização da deriva, já que
mostram, na materialidade discursiva, a constituição he-
terogênea do sujeito (em afastamento e em reafirmação da
posição de doente) e do sentido.
Conflitos podem ser observados também quando o
objeto discursivo predominante é família.
Ocorrência 7
NL [depois] da/da/da janta teve doce
Nesse enunciado, mais uma vez, observamos movi-
mentos de continuidade e de antecipação de elementos
fonológicos que circundam a marca hesitativa, na qual
tais movimentos podem ser detectados pela presença do
elemento fonético-fonológico /d/ – caracterizada pela re-
petição da sílaba “da” – e nas palavras “depois” (no trecho
que antecede a marca) e “doce” (no trecho que a sucede).
Podemos pensar em antecipação também pela presença de
/t/ – fonema que, pelo ponto e pelo modo de articulação,
é muito semelhante a /d/ – nas palavras “janta” e “teve”.
No entanto, estendendo a análise para o trecho que an-
tecede o enunciado, encontramos indícios de outros focos
de tensão relacionados ao elemento fonético-fonológico
recorrente.
NL + o que que fizeram? + a MA fez eh/ o que foi?
((virando-se para MA))
JN uai
NL um almoço
MA + uma janta né?
NL é uma janta
JN uma janta? o que que tinha nessa janta?
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80 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
NL + (vários:) ++ tinha carne assada ++ tinha ++ eh:
maionese
JN hum::
NL macarronada
JN + tava bom lá então [hein]
NL [depois] da/da/da janta teve doce
No momento em que lhe falta uma palavra (“janta”),
NL ancora-se, discursivamente, em MA. Aflora, no
enunciado dele, a palavra “almoço”, corrigida pela esposa
no enunciado: “uma janta né?”.
Nota-se, no trecho como um todo, um conflito envol-
vendo dois termos em relação parafrástica: almoço e janta,
conflito aparentemente solucionado com a intervenção de
MA, mas que perdura, como sugere a repetição hesitativa
“da/da/da” antes de emergir a palavra “janta” no enun-
ciado de NL.
É possível pensarmos que a marca hesitativa indicia
não apenas uma tensão fonético-fonológica, caracterizada
pela continuidade e pela antecipação, mas sobretudo uma
tensão entre esse plano da língua e o semântico, evidencia-
da pelo conflito entre janta e almoço.
Mas não só isso. Uma análise não linear permitiria
recuperar, também nesse momento, indícios da relação
imaginária entre NL e suas interlocutoras JN e MA.
Como já observamos, é conflituoso o lugar ocupado por
NL em relação a elas, na medida em que JN ocupa predo-
minantemente um lugar de questionamento àquele ocu-
pado por NL, ao passo que MA ocupa um lugar de apoio,
de ancoragem. É o que mostra o trecho selecionado, no
qual tanto se observa o lugar de questionamento ocupado
por JN (“uai”) quanto o lugar de ancoragem ocupado por
MA (“uma janta né?”).
Portanto, mais uma vez, a hesitação se configura como
um momento no qual é escancarada uma possível nego-
ciação entre elementos linguísticos (fonético-fonológicos,
semânticos) e discursivos.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 81
Vimos, até aqui, momentos de negociação marcados
por hesitação, em que a posição de sujeito doente é ocupa-
da por NL, em relação aos objetos discursivos doença e fa-
mília. No momento a seguir é possível recuperar indícios
de outro lugar imaginário no qual o sujeito se constitui.
Ocorrência 8
JN + e aqueles prédio que cai né
NL pois é
JN Deus me livre
NL + pois é:/ é que a maior parte que cai é por causa
disso ( ) ((incoordenação)) + é por que a + a:: ((inco-
ordenação)) + a construção u:: ((incoordenação)) o
cimento é a base a/a/ a b/ase ((incoordenação)) é d/
é três lata de areia + duas lata de/de meia de areia e
u:/uma lata de cimento + são dois e meio por um que
se fala + entendeu? + agora tem pessoa que põe qua-
tro + o que acontece d/daí co/co/ põe quatro da/daí
e:sfarinha né e ele: [...]
JN não firma?
NL não end/ não endurece + que acontece que os pré-
dio cai né + se bem que eles cai sai até poeria + parece
que tá (assoriando)
Identificamos nesse trecho, em que o objeto discursivo
trabalho predomina, marcas hesitativas, como a inter-
rupção após o fonema /d/, presente nas palavras “três”,7
“lata”, “duas”, “cimento”, “dois” e “entendeu”, bem
como a repetição hesitativa “de/de”. Essa tensão fonéti-
co-fonológica, no entanto, não se desvincula de uma ten-
são semântica, já que revela também um conflito entre
diferenças de quantidades (de areia e de cimento).
7 Lembremos a semelhança entre /t/ e /d/ com relação ao ponto e
ao modo de articulação.
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82 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Podemos recuperar, a partir da marca hesitativa e de
sua relação linear com os trechos que a circundam, um
momento de negociação entre alguns elementos que ocor-
rem no interior de uma mesma família parafrástica, que
envolve valores numéricos: “três latas de areia para uma
de cimento”; “duas latas de areia para uma de cimento”;
“duas latas e meia de areia para uma de cimento”.
Digno de nota é o momento discursivo no qual a marca
hesitativa irrompe. JN ocupa, aqui, uma posição imaginá-
ria calcada no não saber, uma vez que é ela quem recebe
esclarecimentos de NL. Em outras palavras, é possível
pensar que a própria emergência da medida das quanti-
dades de cimento e areia é interpretada, no imaginário de
NL, como se JN desconhecesse tais medidas.
O trecho reproduzido confirma, portanto, que, ao
aflorar o objeto discursivo trabalho, as relações imagi-
nárias entre os protagonistas do discurso são outras, dis-
tanciando-se daquelas que dominam quando se trata do
objeto doença. A imagem que NL tem de si mesmo parece
se modificar quando ele ocupa a posição de detentor do
conhecimento.
Assim, as marcas hesitativas irromperiam em momen-
tos conflituosos nos quais a posição ocupada por NL e a
imagem desse sujeito em relação aos seus interlocutores
estariam em negociação. A interrupção após /d/ e a re-
petição “de/de” seriam, nesse caso, “formas linguísticas
de representação de diferentes modos de negociação do
sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu
discurso” (Authier-Revuz, 1990, p.26).
Vejamos outro modo de negociação da heterogeneida-
de que caracteriza o processo discursivo em análise.
Ocorrência 9
JN + gen::te ficava um ano [voltando] tudo?
NL [um ano]
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 83
NL é: + ((após pausa faz movimento com os lábios,
próximo ao /v/)) voltava tudo e começa e t/tinha mais
u:/u:/uma parte a mais ++ difícil ( ) + depois que cê
entrava no primeiro colegial
Esse trecho irrompe em um momento no qual o objeto
discursivo estudo predomina. O foco está voltado para
NL ou, mais precisamente, para momentos de sua vida
escolar.
É interessante notar que, ao emergir o objeto estudo,
o foco do discurso volta-se predominantemente para JN.
Esse momento é uma exceção. No entanto, chama a aten-
ção o fato de que a marca hesitativa – a interrupção do /v/
– aponta uma possível ancoragem de NL no enunciado
anterior (de JN).
O que chamamos de ancoragem relaciona-se ao movi-
mento de continuidade, marcado pela presença de /v/ nas
palavras “ficava” e “voltando”, presentes no enunciado
de JN, e pela interrupção de /v/ no enunciado de NL. Tal
ancoragem pode ser percebida também pela emergência,
no enunciado dele, de “voltava tudo”. Esta expressão,
além de conter (em “voltava”) o elemento fonético-fono-
lógico tensionado na marca, configurando um movimento
de antecipação, ocorreu no enunciado de JN: “+ gen::te
ficava um ano [voltando] tudo?”.
Desse modo, embora na maior parte do processo dis-
cursivo em análise a relação estabelecida entre NL e JN
aponte para um conflito, para uma oposição entre manter
ou abandonar o lugar da doença, nesse momento NL co-
loca JN em um lugar de ancoragem. Essa relação de apoio
só surge quando atravessada por outro objeto discursivo
que não seja a doença, uma vez que, fora desse lugar, as
imagens de NL em relação a si mesmo e ao outro parecem
se modificar.
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84 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Em outras palavras, não ocupar a posição de sujeito
doente cria um jogo de cumplicidade entre NL e JN, a
qual se mostra, no fio do discurso, como uma relação de
ancoragem. Existem marcas (nesse caso, a interrupção
após /v/) “profundamente reveladoras do processo dis-
cursivo em que estão inseridas”. Tais marcas apontam
“de que outro é preciso se defender, a que outros é preciso
recorrer para se constituir” (Authier-Revuz, 1990, p.31).
Vimos, nas ocorrências 6 a 9, relações entre desliza-
mentos em contexto fonético-fonológico recorrente e
diferentes objetos mobilizados no processo discursivo
em análise. Observamos que os deslizamentos se confi-
guram como momentos marcados por negociações que
evidenciam tensões entre diferentes planos da língua e da
linguagem, sendo o plano fonético-fonológico um lugar
de tensão comum a todos os nossos dados de análise. Veri-
ficamos, ainda, que essas tensões vinculam-se a diferentes
jogos de imagens entre NL e os demais protagonistas do
discurso.
Com relação aos objetos discursivos, a posição de su-
jeito doente é aquela predominantemente ocupada por
NL. No entanto, embora o objeto doença atravesse todo
o processo discursivo, “nem todos os elementos [por
exemplo: objetos discursivos] têm uma eficácia necessa-
riamente igual [...] um dos elementos pode ser dominante
no interior das condições de um estado dado” (Pêcheux,
1990, p.86).
Considerando a possibilidade de momentos de do-
minância de um objeto em relação a outros constituti-
vamente presentes num mesmo processo discursivo, os
deslizamentos em análise podem indiciar não apenas a
dominância de um objeto discursivo, mas também mo-
mentos de tensão entre diferentes objetos. São desliza-
mentos dessa outra natureza que veremos a seguir.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 85
Ocorrência 10
NL + que a coisa mais difíc:/c:/cil na obra + é a estru-
tura da: da: é a fundação entendeu? + é lá dentro do
chão + porque não adianta cê fazer pra cima boni:to
e: dentro do chão tiver mal feito + que vai acontecer?
+ as paredes vão trincar + (talvez) vai cair + dá defeito
+ então o principal é na saída da/da/da construção
depois + cê sai pra cima aí cê mais ou menos já
O enunciado emerge quando o objeto trabalho é privi-
legiado. Como se pode perceber, irrompem no enunciado
de NL questões específicas de sua profissão (mestre de
obras), incluindo as dificuldades enfrentadas na cons-
trução civil. Ressalte-se que dificuldade, no processo
em análise, é uma propriedade discursiva que sustenta a
reafirmação da posição discursiva de sujeito doente, pro-
priedade lexicalizada pelo adjetivo “difícil” em vários
momentos do processo discursivo.
Nessa ocorrência, o termo “difícil” emerge com mar-
cas hesitativas em seu próprio interior, diferentemente de
outros momentos, em que a marca hesitativa precede a
emergência desse termo. Pode-se pensar em um conflito
entre pelo menos dois enunciados potencialmente pre-
sentes nesse momento da enunciação. Isso porque, apesar
de nesse momento, de modo mais evidente, NL tratar
das dificuldades enfrentadas na construção civil, parece
emergir, na marca hesitativa, o objeto predominante de
todo o processo discursivo: a doença. Se essa hipótese está
correta, ante a deriva que tenta se instalar nesse momento,
esse objeto predominante – que tenta emergir na cadeia
sintagmática durante a hesitação – é silenciado para que
o enunciado em curso nessa cadeia, que se constrói a pro-
pósito do objeto trabalho, mais especificamente, quando
emergem as dificuldades relacionadas à profissão de NL,
possa ser mantido.
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Verificamos, pois, um conflito entre objetos discursi-
vos, trabalho/doença, marcado por hesitação. Outro tipo
de conflito pode ser verificado a seguir.
Ocorrência 11
NL na casa da minha família também eu passo ano sem
ir lá + tem um irmão que tem aqui eu passo/ passei ano
sem ir lá
(...)
JN [((tossiu))] tá certo a gente também tem que ir
quando a gente tá com vontade né?
NL + é: mas às vezes é uma hora que cê não tá com
vontade cê sair cê:: fica p/ (fica) ((incoordenação)) outra
pessoa né? + (se) ((incoordenação)) controla ma:is con-
versa mais um pouco né? + então eh: porque eh (isso
aí) + difícil é cê começar + é igual eu sempre ((incoor-
denação)) que eu v/v/venho aqui f/f/fazer entrevista
com você + no momento que nós começamos eu acho
(muito) difícil + depois vou/ + vai soltando devagar [né?]
Destacamos, no enunciado de NL, a interrupção de
/p/. Esta marca se mostra em um dos momentos em que
o objeto família é dominante no seu processo discursivo.
Notamos que, embora a marca hesitativa aponte para
um momento de tensão fonético-fonológica, mostrado
pelo movimento de antecipação – interrupção após /p/
– da palavra “pessoa” (de importância prosódica no enun-
ciado, já que carrega o acento de uma frase entonacional),
aponta ainda para propriedades discursivas mais caracte-
rísticas do objeto doença, como a necessidade de controle
– “controla ma:is” – e a própria dificuldade – “difícil é cê
começar”.
Podemos pensar, assim, que a marca indicia negocia-
ções que se dão no plano fonético-fonológico da língua e
entre os objetos discursivos família e doença.
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 87
Os deslizamentos exemplificados pelas ocorrências
10 e 11 mostrariam, portanto, momentos de tensão entre
objetos discursivos que perpassam o processo em análise.
Vejamos mais um exemplo de um momento de tensão,
desta vez, entre os objetos doença e família.
Ocorrência 12
JN ++ ((tossiu)) ++ mas o senhor não terminou de me
contar do Natal
NL ++ uhum
((inicia um toque de celular))
JN só me contou o que que teve de comi::da
NL ++ Natal só passamos em casa (JN)
JN + quem que tava [lá?]
NL [a M/] MA foi na casa da mãe dela e eu fiquei em
casa
JN o senhor não quis ir?
NL ++ ((faz movimento para esquerda e para a direita
com a cabeça)) ((celular pára de tocar)) é o problema
que eu tô te falando né a gente f/ acha difícil ficar no
meio do povo
JN + mas mesmo se for famí:lia?
NL + mesmo se for família +++ é uma coisa in::teressante
((incoordenação durante o alongamento)) e:u ((inco-
ordenação durante o alongamento)) não sei o q/q tá
acontecendo comigo ++ mas eu já vi muitas pessoa
falar que esse probl/ que esse (incômodo) dá esse pro-
blema mesmo né
Num momento em que o objeto doença emerge nova-
mente, ocorre interrupção após o fonema /f/, antecipan-
do a palavra “difícil”. Como já comentamos, a dificuldade
é uma propriedade frequente no processo discursivo em
análise. A emergência de “difícil” após a marca hesitativa
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88 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
reafirma a irrupção do objeto doença e da posição de sujei-
to doente no enunciado de NL.
No recorte como um todo, observa-se que o objeto
família estava em dominância – como mostra sua rea-
firmação feita por JN (“+ mas mesmo se for famí:lia?”).
Trata-se, pois, de um conflito de objetos, mais bem mos-
trado, no recorte, pelas pausas (breve e longa) que delimi-
tam o enunciado de NL subsequente ao de JN: “+ mesmo
se for família +++”. Podemos pensar que o deslizamento
em /f/, em combinação com essas duas pausas, mostra
um momento bem marcado de tensão entre os objetos
doença e família.
Além de escancarar um momento de tensão, esse úl-
timo enunciado de NL merece atenção especial, devido
ao modo como nele se marca o objeto doença. Vamos
retomá-lo.
NL + mesmo se for família +++ é uma coisa in::teressante
((incoordenação durante o alongamento)) e:u ((inco-
ordenação durante o alongamento)) não sei o q/q tá
acontecendo comigo ++ mas eu já vi muitas pessoa
falar que esse probl/ que esse (incômodo) dá esse pro-
blema mesmo né
A atenção especial a que nos referimos relaciona-se à
interrupção “probl/”.
Embora, em diferentes momentos do processo discur-
sivo, possamos recuperar indícios das relações estabeleci-
das entre os protagonistas do discurso e o objeto doença,
nesse momento, em particular, uma posição imaginária
ocupada por NL, em relação a esse objeto, aparece, a
nosso ver, explicitada, talvez pelo fato de esse ser um mo-
mento mais explícito de conflito de objetos.
Vemos que, logo após a interrupção “probl/”, emerge
a palavra “incômodo”. Podemos pensar que, nesse con-
flito parafrástico, diferentes lugares de construção do ob-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 89
jeto doença se mostram. “Incômodo” poderia remeter a
um lugar no qual a doença é colocada em distanciamen-
to, como algo que está fora do sujeito e o acomete. Per-
cebemos ainda uma tentativa de atenuar o impacto da
doença, que apenas incomodaria. “Problema”, por sua
vez, pode remeter ao modo como o “outro” configura o
objeto doença: “mas eu já vi muitas pessoa falar que esse
probl/”. Outra possibilidade seria a de que “problema” e
“incômodo” estejam, para o sujeito, em relação de causa e
consequência – a doença faz o doente achar “difícil ficar
no meio do povo”.
É interessante verificar que NL acaba por reafirmar
o modo como a doença de Parkinson é construída no in-
terior da literatura biomédica, já que as características
orgânicas da doença, bem como suas possíveis causas e
formas de tratamento, são entendidas como estando fora
do sujeito.
Podemos perceber essa conjunção de lugares de cons-
trução da doença ao comparar o enunciado de NL e afir-
mações como as de Machado (2000), para quem a doença
de Parkinson é ocasionada por uma lesão na substância
negra do cérebro e seu tratamento é medicamentoso, e
de Limongi (2001), que aponta como possíveis causas da
doença fatores ambientais, como a exposição a inseticidas
e herbicidas, e fatores genéticos,8 que tornariam algumas
pessoas propensas a desenvolvê-la.
Não é apenas na descrição da doença de Parkinson e
nos apontamentos acerca de suas possíveis causas que a
literatura biomédica considera apenas fatores externos ao
sujeito. A lesão neurológica decorreria de fatores ambien-
tais ou genéticos que independem do envolvimento do
8 Uma vez que o sujeito “herda” os fatores genéticos, eles poderiam
ser entendidos como estando no sujeito, mas também, por isso
mesmo, poderiam ser considerados como exteriores à subjetividade.
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90 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
sujeito. O tratamento também independeria do sujeito, já
que, conforme aponta essa literatura, está baseado na ad-
ministração de medicamentos que permitem o aumento
da produção de dopamina. Limongi (2001), em seu livro
dedicado ao estudo da doença de Parkinson, aponta, além
do tratamento medicamentoso, a possibilidade de técni-
cas cirúrgicas que minimizariam os efeitos dela.
A partir das concepções da literatura biomédica, e
considerando que resultados de pesquisas desenvolvidas
no campo dos estudos biomédicos são amplamente divul-
gados, inclusive pela grande imprensa, podemos pensar
que a negociação mostrada na interrupção “probl/” evi-
denciaria um momento de tensão no qual outro discurso,
que atravessa e sustenta o processo discursivo em análise,
é escancarado, já que
[...] as diversas formações [imaginárias] resultam, elas
mesmas, de processos discursivos anteriores (prove-
nientes de outras condições de produção) [...] que deram
nascimento a “tomadas de posição” implícitas que asse-
guram a possibilidade do processo discursivo em foco.
(Pêcheux, 1990, p.85)
Podemos supor, então, que o discurso biomédico atra-
vessa e sustenta o discurso de NL, revelando-se através de
indícios como as imagens que esse sujeito tem da doença,
do interlocutor (lembre-se que JN, no processo discursi-
vo, predominantemente ocupa o lugar de profissional da
saúde) e de si próprio (considerando a relação conflituosa
relacionada às posições ocupadas por NL). Em outras
palavras, com relação a esse jogo de imagens, “a percepção
[do referente, do outro e de si mesmo] é sempre atravessa-
da pelo ‘já ouvido’ e o ‘já dito’, através dos quais se cons-
titui a substância das formações imaginárias enunciadas”
(Pêcheux, 1990, p.85-6).
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 91
Logo, o conflito que perpassa as diferentes posições
ocupadas por NL, sobretudo em relação ao objeto doença,
caracterizado, discursivamente, pelo afastamento e pela
reafirmação desta, seria atravessado também pelas con-
cepções do discurso biomédico sobre a doença de Par-
kinson. E não apenas no que se refere a ela. É possível
pensar em elementos desse discurso, presentes no pro-
cesso em análise, já a partir da relação paciente/terapeuta
estabelecida entre NL e JN. O imaginário do terapeuta
como alguém que tem instrumentos – não apenas do tipo
medicamentoso – para propiciar a melhora do doente,
fortemente inserido no discurso biomédico, “ecoa” no
processo discursivo em análise.
NL hum:: +++ e que que que o quadro nosso (diminui/
t/) o que que tá acontecendo + tá piorando ou melho-
rando? +++ [eu queria saber]
A interrupção “probl/” no enunciado de NL, e tudo
que ela mobiliza, escancara, portanto, “um funcionamen-
to regulado do exterior, do interdiscurso, para dar conta
da produção do discurso, maquinaria estrutural ignorada
pelo sujeito que, na ilusão, se crê fonte desse seu discur-
so, quando ele nada mais é do que o suporte e o efeito”
(Authier-Revuz, 1990, p.27).
Nas 48 marcas hesitativas de deslizamentos em con-
texto fonético-fonológico recorrente no processo discur-
sivo em foco, observamos vários modos de negociação
sujeito–outro(s). Em tais negociações, conforme destaca-
mos nas doze ocorrências analisadas (representativas de
todo o conjunto), tensões centralizadas no plano fonético-
-fonológico da língua mostraram-se vinculadas a tensões
em outros planos, em especial o semântico, bem como a
tensões no próprio processo discursivo, na medida em que
a análise não linear desse processo permitiu-nos detectar
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indícios de conflitos relacionados aos jogos de imagens
entre seus protagonistas e aos objetos discursivos.
Assim, em síntese, os deslizamentos em contexto foné-
tico-fonológico recorrente resultariam da própria “estru-
tura material da língua, que permite que, na linearidade
de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional
de todo discurso” (Authier-Revuz, 1990, p.27).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA
Ao longo deste livro, caracterizamos um funciona-
mento hesitativo linguisticamente marcado, em sua estru-
tura, por aspectos fonético-fonológicos, a partir de suas
relações com outros planos da língua, bem como com fatos
das condições de produção do discurso em que emergiu.
Por meio do estudo que originou o livro, além das con-
tribuições que buscamos oferecer para o entendimento
dos problemas de linguagem em parkinsonianos, tanto
para o campo de pesquisa linguístico quanto para o fono-
audiológico, outra contribuição que acreditamos possível,
como desdobramento de nossa análise, é propiciar um
momento de reflexão para o fazer clínico fonoaudiológico.
As relações dos deslizamentos do dizer com aspectos
mais formais da língua nos levaram a questionar proce-
dimentos frequentemente utilizados durante a avaliação
fonoaudiológica. Como observamos na Introdução, nos
aspectos da linguagem que se mostram alterados em
sujeitos com doença de Parkinson, as pesquisas fonoau-
diológicas e biomédicas enfatizam a qualidade vocal e as
imprecisões articulatórias; a fluência verbal; e, ainda, as
disfluências. Deve-se também ressaltar que as pesquisas
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que levaram a essa ênfase baseiam suas avaliações e coletas
de dados prioritariamente em amostras de produção con-
tínua de vogais; repetição de listas de palavras; nomeação
de palavras pertencentes a um mesmo campo semântico
ou que iniciam com o mesmo fonema; leitura oral de fra-
ses ou de trechos de textos.
A maior parte das publicações a que tivemos acesso
não menciona explicitamente as hesitações e estuda-as,
assim como os demais aspectos da linguagem, de um
ponto de vista exclusivamente orgânico.
Debruçando-nos sobre o modo de avaliação e de co-
leta de dados priorizado em tais pesquisas, não nos sur-
preende que a sua explicação para os achados enfatize os
déficits em aspectos motores/cognitivos. Tampouco nos
surpreende que seja reduzida a menção às hesitações ou
que ela não exista, tanto como fenômeno empírico quanto
como fenômeno linguístico, nessas pesquisas: abordá-las
mais diretamente pressuporia extraí-las de dados mais
próximos daqueles que são obtidos em situações reais de
uso da linguagem, e não em situações mais artificiais.
Nesse mesmo sentido, o fazer clínico fonoaudiológico
que se volta para os problemas de linguagem em parkin-
sonianos, frequentemente sustentado por tais pesquisas,
costuma basear a avaliação da condição de linguagem des-
sas pessoas em simulações ou pequenos recortes de sua
produção linguística falada. Na medida em que esse tipo
de coleta de informações, durante o processo avaliativo,
baseia-se predominantemente em emissões de sons ou
em repetições de palavras, perdem-se, nesse processo,
importantes informações sobre como se dão os mais reais
e cotidianos eventos de uso da linguagem em sujeitos afe-
tados pela doença de Parkinson. Esse fazer empobrece as
possibilidades de análise e acaba por restringir a atuação
fonoaudiológica ao trabalho com situações controladas de
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 95
produção de fala, que não se reproduzem na prática efeti-
va da linguagem nos/dos parkinsonianos.
No entanto, como procuramos demonstrar, os desli-
zamentos se caracterizam como marcas de tensões que se
mostram no eixo sintagmático da linguagem. Para per-
ceber tais tensões, é necessário atentar de modo bastante
acurado para alguns pontos dos dados de linguagem regis-
trados para avaliação e/ou terapia. Principalmente para
uma análise mais precisa dos processos linguístico-dis-
cursivos envolvidos nesses pontos de tensão, com o fim
de detectar seu funcionamento no discurso, é essencial
que o fonoaudiólogo baseie sua interpretação em dados
recolhidos em diferentes situações discursivas, já que a
regularidade desse funcionamento nem sempre pode ser
resgatada em apenas uma situação. Ainda, nesse olhar
para as situações de tensão no discurso mostrada pelo tipo
de marca hesitativa que detectamos, seria importante:
• buscar, pela escuta atenta e pela análise das grava-
ções, regularidades que sustentem os discursos resul-
tantes da relação entre terapeuta e interlocutor par-
kinsoniano;
• centrar a atenção não apenas na marca hesitativa, mas
nas possíveis relações que o sujeito procura manter
com os enunciados que a circundam;
• observar como é construída a linearidade dos enun-
ciados (do sujeito e do interlocutor);
• buscar os diferentes planos da língua envolvidos na
tensão evidenciada na marca hesitativa – em nossos
dados, como vimos, as marcas fonético-fonológicas
apontavam tanto para tensões nesse plano, quanto
para tensões nos planos morfológico, sintático e/ou
semântico.
Estendendo essas recomendações para dados de lin-
guagem que envolvem outras áreas do conhecimento fo-
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noaudiológico, podemos pensar que é preciso olhar não
apenas para o chamado erro (ou falta, ou, ainda, caracte-
rística sobre a qual recai a queixa do paciente), mas para
todo o material linguístico que o circunda, postura que
acreditamos ter assumido, justamente em razão de nossa
vivência na interseção entre os campos da Fonoaudiologia
e da Linguística.
Situarmo-nos nessa interseção permitiu-nos detec-
tar, privilegiadamente, no funcionamento hesitativo que
analisamos, sua relação com caraterísticas do discurso
que sustentava a relação terapeuta–sujeito parkinsoniano.
Como ressaltamos, o objeto discursivo doença se mos-
trou dominante na relação discursiva analisada. Tendo
em vista o modo como, predominantemente, a doença é
entendida no âmbito social e no científico – por suas ca-
racterísticas orgânicas e pelo efeito dessas características
sobre o sujeito, uma vez que o afetam e, muitas vezes, o
incapacitam –, cabe ao terapeuta entender até que ponto
ele é atravessado e/ou se deixa atravessar por esse objeto,
colocando-se ou sendo colocado na condição “de doente”.
Entender esse atravessamento é necessário porque possi-
bilitaria ao terapeuta e ao sujeito parkinsoniano melhor
avaliação dos impactos que essa condição provoca, desde
modificações na vida cotidiana até possíveis sentidos com
que o objeto discursivo doença circula, mobiliza ou é mo-
bilizado no espaço terapêutico.
Foi o que procuramos fazer, ao comparar a ocorrência
das marcas hesitativas em relação aos objetos discursivos
doença e estudo. Como vimos, a emergência no discur-
so do objeto doença foi marcada pela maior frequência
dessas marcas, bem como por um modo predominante
de o sujeito se posicionar diante da doença: pelo lugar da
dificuldade. Por meio dessa comparação, pudemos verifi-
car que ele acaba por reafirmar o modo como a doença de
Parkinson é construída no interior da literatura biomédi-
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 97
ca, já que suas características (orgânicas), bem com suas
possíveis causas e formas de tratamento, são entendidas
como estando fora do sujeito e, portanto, acometendo-o
de modo a impossibilitá-lo ou incapacitá-lo.
Os efeitos dessa construção (e propagação social)
fazem que o espaço terapêutico seja construído como o
lugar em que se trataria a doença, o que naturaliza a emer-
gência do objeto doença como eixo organizador do discur-
so terapêutico. Em decorrência dessa naturalização, como
o profissional fonoaudiólogo muitas vezes encontrará se-
manalmente o paciente, com frequência será solicitado
a acompanhar e esclarecer o funcionamento e o desen-
volvimento da doença, bem como o prognóstico para o
paciente. Nesse tipo de construção, torna-se fundamental
que esse profissional conheça as características da doença
de Parkinson descritas pela literatura biomédica, para que
possa informá-las ao seu paciente.
Em outro tipo de visão, esse tipo de conhecimento
poderia servir também para que, de algum modo, o te-
rapeuta possa conter determinados tipos de efeitos desse
lugar – o da doença – ocupado pelo sujeito parkinsoniano.
Um modo de ele redirecionar os sentidos preferencial e
socialmente mobilizados por esse lugar seria propiciar,
mesmo em situação clínica, um lugar para a reflexão acer-
ca desse objeto, reconstruindo-o na situação terapêutica e
por meio dela, o que permitiria ao sujeito parkinsoniano
deslocar-se do lugar em que se coloca ou é colocado em re-
lação a esse objeto tal como ele é reafirmado socialmente.
Para tanto, além de se ater aos estudos tradicionais,
é imprescindível que o terapeuta aprofunde seu olhar
sobre o sujeito que tem diante de si e sobre as construções
discursivas entre eles estabelecidas, para que possa traba-
lhar com o que está atravessado pela “ilusão necessária do
eu” e pelos “lugares imaginários ocupados nessa relação”,
dando espaço aos outros lugares discursivos possíveis.
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Relembrando a sessão discursiva analisada neste livro,
quando nela observamos a emergência do objeto estu-
do, notamos que a documentadora, discursivamente, foi
colocada pelo sujeito parkinsoniano fora de seu lugar de
terapeuta e transformada em foco do processo discursivo.
Nessas situações, como mostramos, os deslizamentos do
dizer em contexto fonético-fonológico recorrente tendem
ao desaparecimento. Ressalta, assim, a importância de o
fonoaudiólogo estar atento ao discurso do sujeito quando
ele se desloca ou é deslocado do lugar da doença e também
quando o foco do dizer não recai sobre ele. Em momentos
oportunos, é importante devolver ao paciente/sujeito os
efeitos sobre ele desses deslocamentos de lugares, para
que possa perceber nele mesmo as mudanças em seu dizer.
E assim como é essencial que no ambiente terapêutico
haja espaço para o sujeito debruçar-se sobre o lugar da
doença, esse ambiente também deve permitir que aflo-
rem outros objetos discursivos, para que o paciente/su-
jeito possa assumir outros lugares que o constituem, sem
reduzi-los a apêndices do “ser doente”. Essa possibilidade
de ele se deslocar entre lugares que o constituem pode
inclusive – e por que não? – concretizar-se se o terapeuta
lançar mão de outros espaços terapêuticos, que podem ser
construídos até mesmo por meio de um aproveitamento
diferenciado do espaço físico. Pode-se pensar, por exem-
plo, em um uso de uma cozinha terapêutica, ou mesmo de
um jardim, para favorecer mudanças de posições–sujeito
ocupadas nas relações terapêuticas.
Numa concepção como essa, poderiam ser objetivos
de uma terapia fonoaudiológica com parkinsonianos:
• proporcionar melhora/manutenção dos aspectos
formais da língua;
• favorecer um lugar de pensar sobre o lugar discur-
sivo da doença;
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃO 99
• proporcionar diferentes tomadas de posição do
sujeito, por meio da criação de situações de afasta-
mento da posição de “sujeito doente”.
Para conduzir uma terapia orientada por tais objetivos,
é fundamental que o fonoaudiólogo potencialize as muitas
faces da linguagem que constituem uma relação terapêu-
tica e não se restrinja à relação paciente/doente afetado
por acometimentos de fora do sujeito versus terapeuta/
detentor do conhecimento.
Embora a doença de Parkinson seja uma condição
amplamente descrita como resultante de aspectos orgâni-
cos – e não estão sendo colocados em segundo plano os
efeitos desses aspectos sobre e para o sujeito –, ressalte-
-se que o objeto da Fonoaudiologia é a linguagem e, em
decorrência, também toda a subjetividade inerente à pro-
dução do discurso.
Considerando a doença como lugar imaginário e des-
locando-a, assim, do lugar preferencial com o qual ela é
social e cientificamente construída como objeto discursi-
vo, qualquer prática clínica deixa de ser exclusivamente
exterior ao sujeito, já que, fruto do olhar com que desen-
volvemos o trabalho que deu origem a este livro, ele passa
a ocupar o centro dessa prática, como aquele que pode
mudar o lugar do qual se vê e, portanto, a posição que
ocupa. Essas possibilidades de deslocamento – do que
significa a doença e do que significam os diferentes lu-
gares que o paciente/sujeito pode ocupar nessa prática
e em outras de sua vida cotidiana – deslocam também a
própria posição do terapeuta: não mais a posição do único
que detém os instrumentos para possibilitar a melhora do
doente, mas daquele que tem a possibilidade de repensar
junto com ele suas formações imaginárias sobre a doença
e sobre os diferentes lugares que ocupa ou pode ocupar,
mesmo com a doença.
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100 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
Em outras palavras, trata-se, na clínica da linguagem,
de perceber “de que outro é preciso se defender, a que
outro é preciso recorrer para se constituir” (Authier-Re-
vuz, 1990, p.31).
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SOBRE OS AUTORES
Lourenço Chacon. Cursou graduação em Letras Por-
tuguês/Francês pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (1979). Fez mestrado em
Linguística pela Universidade Estadual de Campi-
nas (1985), doutorado em Linguística pela mesma
universidade (1996), pós-doutorado em Linguística
pela University of Florida (1999) e pela Universidade
de Lisboa (2013). Atualmente, é professor efetivo na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”. Tem experiência na área de Linguística, inves-
tigando hesitações na aquisição da linguagem, em seu
modo de enunciação falado, e questões de ortografia e
segmentação na aquisição da linguagem, em seu modo
de enunciação escrito.
Roberta Rodrigues Vieira. Cursou graduação em Fo-
noaudiologia pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (2004) e fez mestrado
em Estudos Linguísticos pela mesma universidade
(2009). Atualmente, trabalha como fonoaudióloga clí-
nica, voltando suas reflexões e sua prática para a clíni-
ca da Linguagem. Atua também no Centro Municipal
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108 ROBERTA VIEIRA • LOURENÇO CHACON
de Atendimento Educacional Especializado, da Secre-
taria Municipal da Educação do município de Marília,
SP, realizando atendimentos interdisciplinares com
outros setores da Saúde e da Educação e investindo na
formação de professores, nos conhecimentos em lin-
guagem falada e escrita.
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SOBRE O LIVRO
Formato: 12 x 21 cmMancha: 20,4 x 42,5 paicas
Tipologia: Horley Old Style 10,5/14
EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação GeralMaria Luiza Favret
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MOVIMENTOS DA HESITAÇÃODESLIZAMENTOS DO DIZER EM SUJEITOS COM DOENÇA DE PARKINSONROBERTA VIEIRALOURENÇO CHACON
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